Jasmim começou a ser escrito como uma homenagem ao Dia Internacional da Mulher em 2008. É uma história que tem uma trama central (que espero que julgue bem elaborada) e tem como protagonista principal Jasmim, uma russa séria e dedicada, que vê seu mundo virar de ponta-cabeça quando coisas estranhas começam a acontecer mundo afora.
Jasmim também foi uma tentativa de reproduzir a narrativa, enredo e estilo do Anime (desenhos animados japoneses) em texto escrito.
-- Cárlisson Galdino
Égide Amorim
Jasmim – nome de pequenas flores de pétalas abertas, quase sempre muito perfumadas, algumas de cor branca, outras amarelas ou rosadas. Apesar de sugerir beleza, perfume e fragilidade, Jasmim, nome que designa a personagem central, é uma narrativa de ação fantástica e envolvente, repleta de aventuras cinematográficas, que leva o leitor ao fascínio pela leitura estimulante, prendendo-o da primeira à última página. Ele é surpreendido com a sequência eclética dos fatos que envolvem enigmas misteriosos, armas, objetos mágicos e símbolos secretos, numa trama de pura magia, despertando-lhe a curiosidade para o que virá adiante e possibilitando-lhe um deslumbramento inevitável.
Jasmim é centrada num conflito vivido pela forte, rígida e disciplinada protagonista que dá nome à obra. Apresentar Jasmim – personagem - é até redundante, pois Cárlisson Galdino a expõe desde as “Saudações”, elementos pré-narrativos, até aos “Acréscimos”, elementos pós-narrativos. Como o próprio autor a exibe: “Heroína russa de temperamento hostil e introspectivo, capricorniana, bela, mas fria e eficaz em tudo o que se propõe a fazer. Inspirada na tenista Anna Kournikova, que no cenário do tênis mundial terminou um dos anos de sua carreira com uma das dez primeiras colocações no hanking feminino mundial.” Seu nome de flor em nada representa delicadeza e fragilidade, mas força intensa e firmeza de propósito, além de ser dotada de uma disciplina excessiva. Bela sim, frágil jamais.
Jasmim é levada pelos sonhos, onde recebe orientações de Klaitu – deus meio sarcástico – coadjuvante que a influencia nas suas ações para encontrar as armas necessárias para a defesa e salvação do mundo. Com pés firmes em busca de seus objetivos, Jasmim, desprovida de medos, contudo munida de notável cautela, leva sempre consigo sua “morningstar”, arma mágica que a defende de diversos perigos e ameaças provocadas por um antagonista misterioso que só será revelado no desfecho da trama. Ela luta e derrota monstros, zumbis e vampiros. Enfrenta todos os desafios que se apresentam em seu caminho, encara com determinação e coragem todas as batalhas, sem nunca desistir de sua missão.
Assim, Galdino desmistifica com maestria a crença de que os homens são superiores às mulheres. Propiciando uma reflexão acerca de pensamentos machistas ultrapassados, ainda existentes em nosso ambiente social e que sobrevivem insistentemente em nossa época.
Servindo-se de conhecimentos astrológicos, o autor cria os personagens com características, comportamentos e personalidades peculiares de cada signo do zodíaco, fazendo assim um jogo interativo perfeitamente compreendido entre eles.
Jasmim é recomendada ao público em geral, feminino e masculino, desde pré-adolescentes a adultos, machistas ou não, que, certamente, tornar-se-ão convencidos que rótulos preconceituosos não resistem diante de uma boa e proveitosa leitura.
Arapiraca, 16 de janeiro de 2011
Paciência é uma virtude
Enquanto a vida quer assim
Mas já é hora de atitude pra Jasmim
São sonhos que falam de um mundo
Diferente de tudo o que já conheci
E o pesadelo mais absurdo
Um dia acordei e esse mundo era aqui
Não precisa bater papo comigo
Só diga o que é que preciso fazer
Me diga quem é o nosso inimigo
E deixe que arrumo um jeito de vencer
Uma arma e um compromisso
Salvar esse mundo é só o que importa
Só pra acabar logo com isso
Pra que eu possa ter minha vida de volta
Nem tudo que é belo é frágil
Nem toda busca tem fim
Nem todo golpe é certeiro
Nem toda bala é festim
Nem tudo na vida é ganho
Nem toda perda é ruim
Nem todo soldado é homem
Nem toda flor é jasmim
Mas há um grande tesouro
Pra quem pode perceber
Que a frieza é uma forma de se proteger
Sonhos estranhos. Jasmim desperta de um pesadelo ligeiramente ofegante. Mais pensativa que ofegante, pra falar a verdade.
A semana toda foi este mesmo sonho. Cidades ruindo, mortos caminhando pelas ruas, simplesmente o caos. E depois Jasmim se vê numa mansão, biblioteca ou museu. Mesas quebradas, estantes pegando fogo, em suas mãos uma arma estranha. Ela quase vê o que está destruindo o lugar, mas sempre acorda nesse momento exato.
Esse sonho insistente com certeza preocuparia menos Jasmim, não fossem as estranhas notícias que circulam todo dia. Desaparecimentos, mortos-vivos em Londres... É como se alguém houvesse aberto a Caixa de Pandora.
Jasmim respira fundo e volta a dormir.
Jasmim abre os olhos para um novo dia. Levanta-se da cama de casal e vai tomar banho. O quarto é enorme, mesmo com seu guarda-roupas de cinco portas lado a lado, mesmo com criados-mudos, escrivaninhas e mais duas estantes, todos de ótima madeira, com aspecto antigo mas em perfeito estado de conservação. No primeiro andar do número 37 da Rionskaya ulitsa, em Volgogrado, Rússia. Seria um sonho não fosse o fato de Jasmim ser só. Seus pais morreram em um acidente de carro há seis anos. Hoje, com 21, é Jasmim quem cuida do antiquário que fica no térreo.
Agora já saiu do banho com seus longos cabelos dourados estirados por suas costas até a cintura, ainda pensando. Veste-se diante do espelho e se prepara para mais um dia.
O telefone chama, mas é no antiquário. Jasmim encara o relógio e comprova que ainda nem são 7:30 e o telefone pode esperar.
Vai para a cozinha com sandálias quase sem salto, uma calça jeans e uma camisa de marca já um pouco antiga. Uma camisa preta com o desenho de dois esqueletos conversando. Já com o cabelo preso, faz uma refeição rápida enquanto pensa na faculdade que já deveria estar cursando. Ser sozinha no mundo tem suas desvantagens...
Enquanto ainda lava os pratos, o telefone volta a tocar. Jasmim termina o que fazia antes de descer, mas o telefone não espera.
Na frente da loja, abre os portões para que o Sol possa ver todos aqueles móveis, relógios e bugigangas antigas. Velharia para alguns, mas muito importantes para quem sabe o valor do passado. E Jasmim aprendeu bem com seus pais o valor de tudo isso.
No birô, Jasmim confere as anotações da empresa. Já são 8:05 quando entra uma moça de dezoito anos, de cabelos curtos e loiros, mais claros que os de Jasmim, e olhos verdes e curiosos.
- Está atrasada, Anna.
- Ah, Jasmim, no meu relógio ainda são 7:50.
Jasmim responde apenas com um olhar fulminante.
- Tá, ta bem! Eu que atrasei o relógio, mas olha, meu irmão não queria sair do banheiro pra eu me arrumar...
- Está bem, mas que não se repita.
O telefone toca e Jasmim o atende antes que chame pela segunda vez.
- Alô, queria falar com Jasmim.
- Professor Nicolau?
- Jasmim? Pode vir aqui na biblioteca da universidade? Gostaria de falar com você.
- Sobre?
- Um curso novo que eu acho que você vai gostar. Tem poucas vagas.
- Tudo bem.
- Ainda hoje, pela manhã, certo?
- Está bem.
- Estou te esperando! Até mais, Jasmim!
- Até, professor.
A moça está parada, olhando Jasmim com o queixo apoiado nas mãos.
- Vai sair hoje, né?
Jasmim responde com um olhar que diz ao mesmo tempo algo como "pergunta idiota!" e "quem te autorizou a ouvir minhas conversas ao telefone?"
- Eu sei, chefe, mas eu queria saber de uma coisa... Por que não vende aqueles relógios que estão encaixotados? ... É, na sala dos móveis empoeirados lá no fundo!
- Quem mandou...
- Ah, Jasmim... Tem tanta coisa legal por lá... Devia vender também. Sabe, aqueles relógios, aquelas armas... Tem gente que coleciona essas coisas!
Por uma fração de segundo Jasmim transforma sua cara de raiva numa cara de surpresa. "Armas?"
- Vamos ver.
Abrem a porta para aquela sala cheia de poeira e teias de aranha cobrindo móveis e caixas. Não seria muito perigoso arriscar dizer que ninguém entra nessa sala há anos. Mesmo Jasmim entrou poucas vezes e nunca passou muito além da porta.
- Onde estão? Só diga.
- Os relógios eu achei ali atrás daquele guarda-roupas. As armas estão numa caixa por trás desse sofá aí.
Jasmim a encara fria.
- Você deixou a loja sozinha pra fuçar aqui dentro?!
- He, he! Lembrei que não tem ninguém lá na frente... Fui!
Jasmim caminha até o sofá grande coberto com um pano cuja cor não dá pra ver devido à camada espessa de poeira. Logo atrás, uma caixa de madeira com a tampa mal encaixada e marcas recentes de dedos na camada de poeira.
Empurrada a tampa de lado, lá dentro estão punhais, adagas, um cajado e uma arma estranha. Um bastão de mais de um metro terminando numa bola de metal com pontas. A leve expressão de surpresa no rosto de Jasmim e o brilho em seus olhos azuis denunciam: é exatamente a mesma do sonho.
- Você não pode entrar aqui com isso! - Um vigilante grita de pé com a mão estendida.
- Vim ver o professor Nicolau.
- Mas não com essa... coisa!
Jasmim o encara do outro lado do balcão, onde está uma caixa de madeira para um tipo de relógio de parede estreito e muito alto. Ao invés de um relógio de parede, entretanto, a caixa traz uma estranha arma. Um bastão preso a uma bola cheia de pontas.
- O que você acha que eu vou fazer com isso? Assaltar a biblioteca e roubar livros?!
- Não pode entrar! Isso é uma arma!
- O professor Nicolau é arqueólogo e ensina História. Isso interessa a ele!
- Não vou deixar você entrar com isso.
- Seu idiota!
- Como é?
- Calma vocês dois. - Um homem de óculos um pouco corpulento e baixo, de cabelos grisalhos denunciando seus cinquenta anos, se aproxima. - Deixe-a entrar, ela veio me ver.
- Não com isso, professor.
- O que temos aqui... Hmmm... Ora, Demétrius, faça-me o favor! Acha que ela tem força pra manusear isso aí? Ela mal consegue carregar a caixa!
- Como é? - Jasmim encara o professor com raiva.
- É mesmo, né professor? Está bem, pode entrar.
Eles caminham. Jasmim por pouco não desiste e volta da portaria mesmo.
- Calma, Jasmim. Desculpe meu comentário com o Demétrius. Eu tive que dar um jeito de você entrar logo. Estou bem ocupado hoje.
- Que jeito!
- Ora, vamos. Você sabe que não duvido do seu potencial. Se duvidasse não ia querer tanto que fosse minha aluna. Vamos até minha sala.
Eles caminham por um corredor até o fim, numa porta de vidro que leva à biblioteca de fato. Mas não a atravessam, ao invés disso entram na sala à esquerda.
- Não tem coisa melhor para um estudante do Passado do que um escritório numa boa biblioteca... Bem, pelo menos para um estudante do passado que não tem mais vigor suficiente para viajar pelo mundo fazendo pesquisa.
Sentam-se em torno de uma mesa que fica no canto da sala, do lado oposto às três estantes cheias de livros.
- Mas me diga: o que significa esse morningstar?
Jasmim responde com uma interrogação no olhar. O professor continua.
- Morningstar! Estrela da manhã! Era uma arma temida na Idade Média. Por ser muito pesada e, bem, além de essas pontas machucarem um bocado, ela conseguia furar armaduras. Hmmm... E esse exemplar que você tem é bem grande! Nunca vi uma morningstar dessas!
- Por isso a trouxe. Eu já.
- Diga-me o que tem a dizer.
- Há dias eu sonho com esta arma. Descobri hoje sua existência lá no porão do antiquário. Nunca a vi antes, só nesses sonhos.
- Interessante... Então você acredita que ela pode ser mágica ou algo do tipo? - Jasmim não responde, esperando que o professor prossiga - Jasmim... Eu sei que os jornais têm falado muita besteira sobre destruição mundo afora, mas acredite em mim: eu já vi a História acontecer. Esse truque é antigo. Eles só querem esconder o fracasso do Governo. Estamos vivendo uma crise econômica, à beira de uma queda como nunca visto antes. Eles precisam culpar elementos externos. O único inconveniente é que não souberam fazer. Pelo visto investiram muito em histórias absurdas. Os russos aprenderam muito com os americanos. Este é o típico jeito americano de fazer filmes: pouca história e muitos fogos de artifício.
Ele para um pouco e olha por uns instantes o mapa da Rússia na parede à sua direita, de frente para a porta.
- Sabe? Tenho outra teoria, mas é muito difícil que esteja acontecendo isso. Podemos ter uma nova Guerra Mundial em progresso lá fora pegando a todos de surpresa, isso também já aconteceu antes. Mas só te digo uma coisa, Jasmim: não acredite em tudo o que a imprensa diz. Gosta de incenso? - Ela dá de ombros. - Tenho um aqui em sua homenagem. De Jasmim!
O professor se levanta e caminha até uma pequena mesa, onde há um objeto antigo de cobre, em forma de bacia, mas com desenhos e detalhes ao redor. De um pote de plástico ele despeja um pequeno morro de pó no objeto. Em seguida o acende e volta.
- Faz tempo que não uso incenso aqui. É bom para relaxar, sabe? Minha mulher é que gosta dessas coisas. Quando a gente começou...
Um estalo forte interrompe o professor e chama a atenção dos dois para o incenso que queima. Um brilho estranho começa a ganhar força e uma chama sobe sobre o incensário.
- O que está havendo? Isso não é pra queimar assim. - O professor se levanta e Jasmim segura seu braço. - Calma, Jasmim. Você está muito impressionado com essas besteiras da Imprensa.
Num instante, um calor imenso e entre estalos de chamas revoltas o professor é arremessado contra a parede e Jasmim é jogada para o lado oposto, deslizando no chão.
Parece uma pessoa, mas é fogo. É tudo o que Jasmim percebe de quem os atacou agora que está se levantando. Seu olhar não expressa medo: ela sabe exatamente o que fazer.
Jasmim, que já estava perto da porta, rapidamente deixa a sala do professor Nicolau. Em apenas alguns segundos está de volta com o extintor de incêndio que vira no corredor.
A estante perto do professor está em chamas; o professor, totalmente imóvel jogado no chão. Mas aquela estranha criatura de fogo em forma humanoide continua lá. Se ela tivesse sido fruto da imaginação, o fogo não era e o extintor teria sido, de qualquer forma, necessário, eis o que pensou Jasmim. Como esse ser alto de fogo parece ser real, Jasmim segue com a outra ação que havia planejado.
Enquanto caminha iluminando e produzindo estalos em direção ao professor, a criatura é surpreendida por uma fumaça branca em suas costas. Em um giro rápido de braço, ela se livra do incômodo.
Jasmim é arremessada contra uma das estantes do outro lado da sala. O extintor bate na parede, cai rolando no chão. Jasmim ergue a cabeça enquanto alguns livros caem sobre suas costas. Seu plano não deu certo e seu pescoço dói. Em uma olhada rápida na sala, outra ideia lhe ocorre. Levanta-se.
A criatura em chamas vem em sua direção. O extintor não parece ter produzido qualquer efeito nela, mas não importa. Jasmim espera o momento certo... Esquivando-se da criatura, salta para a mesa onde conversava com o professor há tão pouco tempo. Suas mãos vão direto para dentro da caixa que trouxera e seguram com firmeza a Morningstar. Metade do trajeto concluído, Jasmim não espera para dar dois passos girando a arma no ar, mirando a peça que o professor utilizara como incensário.
Situações estranhas exigem raciocínio estranho. Se o monstro saiu daquela peça como parece ter saído, pode haver uma ligação vital com ela de alguma forma, eis o plano.
Um movimento mal calculado e a bola de aço encontra o chão, estilhaçando alguns azulejos. A criatura se volta e vem em sua direção.
Morningstar erguida e outro golpe, desta vez atingindo o alvo. A peça se quebra no meio, bem como a mesa pequena de madeira onde estava.
Com o pescoço doendo, Jasmim se vira um pouco para o lado, na esperança de que o monstro tenha desaparecido. Para sua decepção, tudo o que vê é a tal criatura, já assustadoramente próxima, com um dos braços vindo em golpe. Instintivamente, Jasmim ergue a arma como uma defesa. O golpe a arremessa para próximo à mesa de há pouco. Jasmim afasta a cadeira e se ergue. Sente que desta vez não recebeu todo o golpe, como se tivesse conseguido apará-lo com a Morningstar e apenas a força da criatura a jogou para longe.
Empunha com firmeza usando as duas mãos, enquanto a criatura se aproxima mais uma vez. Pelo canto dos olhos, vê de um lado o professor ainda inerte; do outro, olhos assustados já se agrupam na porta a assistir à cena.
Num movimento de rebatedor de Basebol, Jasmim atinge o ser de fogo. Desta vez é ele quem vai ao chão, perto do objeto quebrado e dos restos da mesa, no canto de onde viera.
Não havia ocorrido a Jasmim que esse estranho ser de fogo pudesse ser ferido por uma arma assim. Golpeá-lo agora foi o que se podia chamar de ação desesperada. Um leve sorriso se forma em seu rosto enquanto ela reempunha a arma. Um sorriso sutil, pois apesar de saber como ferir o inimigo, ele ainda existe.
Jasmim salta sobre ele no momento em que ele ainda se levantava. O ombro direito de Jasmim recebe o impacto de um braço flamejante logo depois que a Morningstar alcança o chão.
Jasmim ergue a Morningstar já aplicando outro golpe. Outro golpe que não atinge o oponente. Desta vez, porém, não há tempo para revidar. Três golpes mais vêm rapidamente e todos atingem o monstro de fogo, que cai já com o brilho mais fraco.
Jasmim o atinge mais algumas vezes até que ele se desfaz em uma fumaça densa.
Os olhos azuis da vitoriosa guerreira acompanham, desconfiados, a fumaça. Prestes a atacar novamente a qualquer sinal de "vida". Mas a fumaça se dispersa pela janela. Acabou, e ela se deixa cair sentada no chão.
- Seu cabelo está pegando fogo!
Não é o cabelo, é a camisa, perto de onde o monstro a atingira.
Jasmim tira a camisa. Bate duas vezes no chão e apaga o fogo que ela trazia. Passa a mão no cabelo e está normal. Solto a essa altura, sujo e bagunçado, mas sem sinal de fogo. Seu ombro, entretanto, traz uma bela queimadura.
- Você está bem? Já chamaram a ambulância.
As pessoas já entraram na sala. A maioria está além do balcão, olhando...
- Professor?
- Ele está vivo. Fique parada, você não está bem. A ambulância chega já.
Jasmim abaixa um pouco a cabeça, pensativa. Agora seu ombro começa a doer de fato. Quase não pode mexer o pescoço também sem piorar a dor nele. Sua preocupação, porém, é na correlação entre o que houve e o sonho. Foi real? Se foi, como estará realmente o mundo lá fora?
Seus olhos veem que, da cintura pra cima, está apenas de sutiã. Na mão direita, a camisa preta ainda está enrolada, como ela lembrava. Mas a mão esquerda ainda segura firme a Morningstar.
- Meu nome é Pietro. O seu é Jasmim, né?
Estão de carro, um carro laranja de duas portas não tão novo. O motorista é um homem jovem de óculos arredondados e cabelos curtos e lisos. Veste-se de branco. A seu lado, Jasmim com o pescoço imobilizado e alguns esparadrapos e pomadas pelo corpo, sob a mesma roupa.
- Ei, já vi que você não é de falar muito... Até sua camisa, olha! - Aponta para o desenho dos dois esqueletos. - Até o desenho da sua camisa conversa mais que você!
Jasmim o fita com cara de tédio.
- Hmmm... Parece que vai chover hoje, né?
Jasmim desiste e desvia sua atenção para as casas e árvores que passam à sua janela.
- Ainda não entendi uma coisa... Como é que você se machucou tanto numa sala, hein? Estava lutando Caratê com o seu professor ou algo assim?
- ...
- Ou então você é muuuuito desastrada, né? Nunca vi...
Jasmim aponta para a rua, na próxima entrada à esquerda.
- Olhe, obrigada. Já chegamos.
- Ah, o que é isso, Jasmim! Foi um prazer conversar com você! Sabe? É meio chato vir sozinho pro almoço todo dia!
- Pare aqui.
- Além do mais... Está bem. Além do mais é caminho de casa, sabe? Não é incômodo.
Pietro sai do carro para tentar ajudar Jasmim a descer, mas ela sai sozinha. Então ele levanta o banco para pegar a caixa de relógio.
- Realmente essa caixa é pesada, hein? Você mora aqui? Não estou vendo a casa.
- Na outra rua.
_ Por que não disse? Eu te deixava lá e...
- Ia pegar contra-mão. - E estende os braços para receber a caixa.
- Não, não! Que é isso!? Eu levo pra você! Você está machucada e eu sou um cavalheiro, vamos que te acompanho.
Jasmim olha para ele por um tempo...
- Está bem, mas vê se para de falar. Já tive um dia péssimo.
- Tudo bem, deixe comigo!
Pietro trava o carro e segue acompanhando Jasmim pela calçada, próximo à esquina.
- Nossa, essa caixa é mesmo pesada! Como você anda com isso?
- ...
- Ainda não entendi como você se queimou. Machucado a gente cai de mal jeito e pronto, mas queimadura numa sala... E dizem que queimaram livros lá também...
- ...
- Aquele lá é seu professor, né? Você estuda o quê lá?
- ...
- Tá, tá bem... Não quer dizer, eu adivinho! Você tem cara de quem faz... Arquitetura, acertei?
Jasmim responde com a feição mais parecida com um sorriso que deu a Pietro. Arquitetura... Provavelmente ia terminar fazendo História, Arqueologia ou algo do tipo. Talvez até mesmo Administração. Porque tem a ver, de certa forma, com a sua área de atuação hoje, mas fazer Arquitetura era seu sonho na infância e adolescência.
- Viu, acertei! Você faz Arquitetura! Você é muito calada, sabe? Devia se soltar mais, ser menos tímida... E menos desastrada também. Eu mesmo quando comecei a fazer Enfermagem, olha, nem te conto: era um desastre! Hoje, eu... Olha, tem bombeiros ali!
- Quê?!
O carro está parado no número 37. Sim, na frente do antiquário, na mesma calçada por onde estão indo agora os dois. Com o susto, Jasmim tenta correr, mas para dois passos depois. "Malditas dores!"
- É sua casa? Nossa! - Pietro chega perto dela. - Está bem? Calma, a gente vê o que aconteceu. Espero que não tenha estragado muita coisa.
Jasmim olha séria em direção à loja à frente enquanto caminha como pode.
- Menina, você é quente mesmo, hein! Dois incêndios no mesmo dia!?
Com raiva, Jasmim toma a caixa de Pietro, mas não consegue segurá-la e ela cai no chão.
- Jasmim!? - É a Anna, que ao ouvir o barulho sai da loja correndo ao seu encontro. - Você não sabe o que aconteceu e... O que aconteceu com você?
- Ela se machucou um pouco, mas está bem. É só descansar. Alguém se machucou aí?
- Não e...
- Vamos. - Jasmim fala para Anna, ao ver que ela já pegou a caixa do chão. - Obrigada e adeus. - Fala para Pietro, sem nem olhar para ele, e caminha com Anna.
- De nada, Jasmim! A gente podia sair qualquer dia, né? Conheço uns lugares bem quentes! Boa recuperação!
Logo elas chegam. Jasmim, com o coração apertado vê a fumaça no fundo da loja e, do seu lado, Anna abraçada com a caixa, com lágrimas correndo por seu rosto já sem maquiagem, e com os lábios trêmulos.
- Olha, Jasmim, eu juro que não fui eu...
- Jasmim, juro que não fui eu... - Anna chora sentada ao balcão com os braços jogados sobre a caixa que Jasmim trazia.
- Calma, Anna. - Jasmim fala perto dela após enxugar uma lágrima que corria de seu próprio olho direito. - Me explique o que houve.
- Eu não sei... Eu estava aqui e ouvi um barulho lá dentro. Acho que era rato. Você brigou comigo porque eu fui lá dentro e dessa vez eu não fui. Também, se fosse rato... Desculpa, Jasmim, eu devia ter ido ver, mesmo que você brigasse comigo depois... Desculpa, não fui eu que fiz isso não também... Eu juro... - Cada frase é banhada a lágrimas e dita com dificuldade.
- Calma... Depois você explica melhor. - Jasmim ainda em choque tenta entender o que houve. Caminha em direção ao fundo da loja. À metade do caminho, vê um bombeiro vindo de lá.
- Ei, moça! Você mora aqui? - Jasmim responde com um aceno de cabeça. O aumento das dores lhe diz que não foi uma boa forma de responder, com o pescoço ainda imobilizado.
- Quando seus pais chegam?
- Por quê?
- Precisamos falar com eles.
Jasmim respira fundo.
- Tem uma cigana que atende há três quarteirões. - O bombeiro alisa o bigode, sem entender. - Olha, eu sou a proprietária. Dá pra dizer o que houve?
Ele franze a testa ainda mexendo no bigode e ainda sem entender.
- Senhora, senhorita...
- Jasmim.
- Jasmim, preciso mesmo falar com seus pais.
- Já disse que sou a proprietária. O que houve?
- Bom, se você está dizendo...
- Meus pais morreram.
- Ah, desculpe. Meus pêsames...
- Dá pra dizer logo o que houve? - Jasmim pergunta com raiva. Além do péssimo dia, ainda ter que aturar emoções e lembranças tristes a irrita.
- Um incêndio naquela sala no fundo.
Jasmim passa por ele e continua o trajeto de antes. O bombeiro a segue. A fumaça ainda não se dispersou e alguns objetos se encontram parcialmente queimados ainda fora da tal sala.
- Conseguimos controlar o fogo, mas dentro daquela sala acho que nada mais presta.
- Capitão! Pode vir aqui? - É um outro bombeiro que estava no primeiro andar, falando agora do meio da escada.
Jasmim olha para os dois preocupada. Sua dúvida é clara em seu rosto: "teve incêndio no primeiro andar também?" Mas ela não externa por palavras e nenhum dos dois olha para ela. Eles apenas sobem e Jasmim os segue.
Na sala, o outro bombeiro, careca e de uns vinte e dois anos, já está abaixado próximo ao sofá, que fica sob a janela.
- Não foi acidente. Olha isso... - Ele levanta um dos quatro palitos de fósforo parcialmente queimados em cima do sofá. - Tentaram tocar fogo aqui também, acho que o vento apagou logo no início.
Jasmim vai até o quarto: seu guarda-roupas está aberto e suas roupas de cabide espalhadas pelo chão. Volta e já encontra o capitão dos bombeiros no corredor. Ele se aproxima de Jasmim e fala baixo.
- Sua funcionária... Como é a relação entre vocês?
- ...
- Digo, você viu lá fora? Aqui é o primeiro andar, não é tão simples alguém pular a janela.
- Eu deixei fechada.
- Bom, então alguém veio aqui e abriu. - Jasmim mantém a expressão séria enquanto em sua mente se forma uma complexa estrutura de possibilidades e ações.
- Bom, desculpe senhora Jasmim. Na verdade, nosso trabalho aqui já acabou. O que eu queria falar é que vocês precisam ter extintores aqui, já que trabalham com tanta madeira velha. Esse não é o momento, além do mais é bom seu marido estar presente. Quando quiserem é só ligar pro Corpo de Bombeiros e agendar que a gente manda alguém pra dizer quais é bom ter e onde colocar, além de dar instruções pra vocês sobre o uso.
Jasmim continua andando até a janela.
- Estamos indo. Recomendo que chame a polícia urgentemente.
- Obrigada.
Eles a deixam sozinha olhando através da janela e vão embora do prédio. A janela leva a um terreno abandonado, com árvores e mato. Jasmim sobe de joelhos no sofá para poder ver melhor lá fora.
Observa até que resolve fechar a janela e descer. Só então nota que não dá mais para fechá-la: o cilindro metálico do ferrolho fôra precisamente cortado ao meio.
Dois anéis. Em todos os detalhes, como se o mundo fossem apenas estes dois anéis.
Um deles é de cobre e tem, na frente, seis minúsculos cristais semi-esféricos formando um círculo que contorna um cristal em formato de losango, inclinado 45 graus.
O outro é na verdade uma aliança, como se houvesse sido montada por peças de prata e peças de cobre. Perfeitamente acabada, mas com áreas de uma cor e áreas de outra.
Mais anéis aparecem, mas rapidamente. Um deles pega fogo, outro petrifica a mão e o terceiro explode. Jasmim desperta.
Ainda é noite. Diante de seus olhos lá está a janela, fechada. Vários ferrolhos e trancas. E com um mensageiro dos ventos preso acima da janela e invadindo a área que ela percorre ao abrir. Não dá pra ver, de dentro da sala, mas há barras de aço por fora.
Jasmim está deitada no sofá, que fôra arrastado para outra parede. Ainda abraçada à haste de sua morningstar, que descansa com a bola de aço no chão.
Já fazem alguns dias desde que houve o incêndio. Já está quase totalmente recuperada, só o pescoço ainda dói um pouco.
Jasmim se levanta para ir ao banheiro. Ergue sua morningstar e segue. Desde o incidente com aquele homem de fogo, ela passou a ter respeito e confiança nessa arma. E em si mesma também.
Claro, também tem a suspeita de que quem veio à sua casa e bagunçou tudo, causando o incêndio e fugindo sem levar aparentemente nada tinha como objetivo essa arma. Como ele sabia dessa arma?! Como saber? Jasmim também não faz ideia de como sabia por sonhos antes de vê-la diante de si!
A polícia esteve aqui e fez registro da ocorrência. Parecem não ter acreditado muito que alguém invadiu só pra tocar fogo. Se ao menos fosse um órgão com arquivos de documentos comprometedores... Assim como os bombeiros, eles levantaram suspeita da Anna. Mesmo após terem visto o que ocorrera ao ferrolho.
Anna já se recuperou do susto, embora ainda olhe para a escada a cada cinco minutos, com medo de descer algum incendiário inesperado.
E os jornais falam de tanta coisa estranha... Teve uma casa em Volgogrado mesmo que dizem que simplesmente desapareceu com o que quer que estivesse dentro. Assalto a museu também parece ter virado moda. E curiosamente muitos desses bandidos já foram pegos. Alguns enlouquecidos, uns mortos e outros que tiverem pior sorte.
Jasmim volta para o sofá. Deita-se e olha para a janela com seus tantos ferrolhos. Por um momento lhe parece um certo exagero tudo isso e ainda dormir na sala armada. Solta um leve sorriso ao imaginar qual seria o próximo passo. Construir uma torre de observação num segundo andar? Mandar cavar um fosso ao redor do prédio e encher de água? Talvez esteja mesmo exagerando um pouco.
Mas talvez não, então Jasmim dorme ali mesmo no sofá, esperando o sonho com os anéis. Afinal, é só com o que sonha desde o dia do incêndio. E até já sabe que não vai dormir por mais que três horas até que aquele anel estúpido exploda e ela acorde.
No porão da loja não sobrara nada que se aproveite. Os móveis praticamente viraram pó, assim como os relógios de que a Anna falava. Até mesmo as armas, que têm tanto metal, não são mais do que ferro velho.
Ontem Jasmim já vasculhou a casa em busca de anéis. Não que se lembrasse de haver anéis no antiquário, mas não se lembrava de armas e no entanto lá estavam elas no outro dia.
Não encontrou os anéis, mas já decidiu colocar seus sonhos à prova em definitivo. A morningstar pode até ter sido coincidência, mas amanhã ela inicia a jornada em busca dos anéis. E os anéis não serão só anéis caso os encontre. Serão a prova definitiva e determinante do novo rumo da sua vida.
Anna caminha pela calçada no início do dia. Ao longe, avista o antiquário já aberto. Confere o relógio. Tinha certeza de que não estava atrasada de novo e os ponteiros confirmam que ainda não são oito horas.
- São os sonhos de novo, né? - Pergunta, ao entrar e ver Jasmim no balcão, vigiando a entrada.
- É.
- Você vai se acabar assim! Tem que dormir! Já tentou algum remédio?
- Não, obrigada.
Só então Anna percebe a caixa comprida, onde Jasmim leva a Morningstar, sobre o balcão. Jasmim se levanta.
- Vai sair, Jasmim?
- Vou.
- Por quê?! Não gosto de ficar sozinha aqui!
- As janelas estão protegidas agora.
- Eu sei, mas tem a frente! Sei lá, com você aqui eu me sinto mais segura... Gosto tanto quando você está aqui comigo... Vai não!
Jasmim para com olhar distante, enquanto a Anna vai ficando vermelha.
- Ei, está pensando em quê? Sou sapata não, viu? - Anna fala com um sorriso envergonhado.
- Está querendo dizer que eu seja?
- Não, é que... - Anna fala, já sem graça, coçando a cabeça. - Ah, deixa pra lá... Vai onde?
- Vou pôr os sonhos à prova.
- Legal.
Jasmim se dirige à porta de entrada carregando a caixa.
- Ei, Jasmim! Vai levar mesmo isso? - Aponta para a caixa em seus braços.
- Vou.
- Não vai ser mais difícil trazer a outra arma, quer dizer, se o sonho for como o de antes?
- Desta vez não é arma, são anéis.
- Bom dia, em que posso ajudá-la? - Um senhor de idade recebe Jasmim em seu antiquário, tão grande quanto o dela, com algumas estantes interessantes no canto, que logo chamam a atenção de Jasmim, mas não foi isso que veio procurar.
- O senhor tem anéis?
- Hmmm... Não, infelizmente não tenho.
- Que pena. Obrigada.
- Não há de quê. Era só isso? - Jasmim responde afirmativamente com a cabeça. - A caixa não é para me vender algo, então?
- Não, obrigada. - Jasmim se vira para ir embora.
- Perdão... - o homem fala, fazendo Jasmim se virar de volta. - Você não é filha dos Arsoyevna?
- Sim.
- Sou Igor Era amigo dos seus pais... Olha, se precisar de qualquer coisa, é só pedir, tá? A gente pode negociar uma estante quando você quiser.
- Obrigada. - Jasmim faz um cumprimento rápido e sério antes de deixar definitivamente a loja.
Amigo de seus pais... Oferecendo ajuda... Jasmim não deixa de pensar no que o sr. Igor realmente está querendo. Afinal, "amigo de seus pais" que se importasse mesmo não esperaria para oferecer ajuda à órfã só seis anos depois... Teria oferecido só por educação? Não que Jasmim precise dessa ajuda. Não que Jasmim aceitasse tal ajuda, ainda que precisasse. Afinal, estantes antigas, valiosas e bonitas ela também tem e aquelas do sr. Igor perderam a graça.
Lustres, relógios, vitrines com objetos dos mais variados. A loja é estreita, mas praticamente não tem sofás ou estantes.
Um casal de vendedores comenta lá no canto a entrada daquela jovem de jaqueta e calças jeans e cabelos loiros. De olhos azuis, a carregar uma caixa comprida de madeira.
Jasmim ouve palavras soltas entre o que os dois cochicham. Palavras como "Arsoyevna", "chata" e "o que ela quer".
Continua entrando na loja e a mulher que conversava, uma ruiva de jeito sonso, a recebe.
- Pois não?
- Vocês têm anéis?
- Temos sim, acompanhe-me.
Elas caminham até um jogo de sofás. Sim, de fato a loja tinha sofás... Mas são sofás para atendimento.
- Aguarde aqui um instante.
Jasmim se senta com a caixa sobre as pernas e observa a loja de onde está. Intuitivamente cada produto que recebe seu olhar forma um preço em sua mente. Depois de anos e de dedicação e esse ramo, avaliar objetos antigos se tornou uma ação quase automática. É claro que os valores que deduz são base, geralmente aumentam ou diminuem conforme o estado de conservação, que só uma análise mais atenta e próxima mostra, e a história do objeto.
Enfim lhe vem uma mulher com vestido turquesa, de cabelos ruivos longos e ar desconfiado. Parecida com a anterior, porém mais velha. Provavelmente sua mãe e dona do estabelecimento.
- A senhorita gostaria de ver anéis?
Jasmim avalia os anéis; a dona avalia Jasmim. É desconfortável comprar desse jeito. Um misto de desconfiança e curiosidade permanece claramente expresso nos olhos de Anastasia, a dona da loja, sentada diante de Jasmim como um lobo à espreita de um animal desconhecido, ainda na dúvida se é uma presa fácil.
Jasmim não imaginou que houvesse tantos anéis aqui. Onze caixas! Tudo bem que alguns anéis estão quebrados, mas ora, têm valor histórico! Jasmim já vai na oitava caixa, olhando os anéis à procura daqueles do sonho insistente.
- Ora, ainda não achou o que queria?
Não há resposta.
- Não gostou desse dourado? Deve ficar bem em você, combina com seus cabelos.
- Não. - Jasmim responde enquanto fecha a caixa e parte para a nona.
- E esse de prata? Pertenceu à Anastasia Beskov Fernández, há dois séculos. E combina com tudo!
- Eu que sei com o que devo combinar.
Anastasia a encara surpresa e com um pouco de raiva. De repente, como obra de magia, sua expressão muda completamente.
- Senhorita Arsoyevna... O que quer afinal? A senhorita não tem cara de quem se importa com anéis. Aposto que nem tem anéis na sua loja. O que faz você vir até aqui me fazer perder tempo?
Jasmim fecha a caixa e levanta o rosto lentamente, cobrindo Anastasia com um olhar sério e penetrante. Um olhar sem medo, de quem não se abalou nem um pouco com a provocação.
O tempo passa com as duas na mesma posição. Aos poucos Anastasia percebe que não tem forças. Surpresa com a reação, engole seco ao perceber que o lobo é a presa.
Jasmim abre a décima caixa e procura. No começo demorava mais, alguns anéis chamavam sua atenção. Não provou nenhum, afinal seus sonhos lhe mostraram uma mensagem que para ela era clara: anéis desconhecidos explodindo ou entrando em combustão.
Décima primeira caixa, enfim a última. Esta tem menos anéis que as outras, mas tem alguns colares e broches misturados. A mão de Jasmim passeia pela caixa, afastando as joias na tentativa de ver todas. Enfim, fecha a caixa, empilha sobre as outras, pega a caixa que ela mesma trouxera, já que guarda sua arma - muito maior que as onze - e se levanta.
Até pensa em agradecer, mas ao lembrar das palavras da mulher, simplesmente a cumprimenta. De um jeito tão frio que sai quase como uma ameaça. Então vai embora, deixando os três comentando mortos de raiva.
"Espero nunca precisar vir aqui de novo."
Jasmim desce do táxi diante de mais uma loja. Uma loja de joias
- Vocês têm anéis de cobre?
- Pois não, senhorita. - a esbelta atendente de cabelos curtos e nariz empinado, antes de se virar. - Por aqui, por favor.
Vários anéis... Nem tantos assim, na verdade. Uns vinte, todos na vitrine, mas...
- Vocês não têm algum antigo?
- Perdão, antigo? Como a senhorita está procurando? Com cristais? Com...
- Isso não importa. - Jasmim a interrompe. - De cobre e antigo.
- Olha, acho que não temos.
- Achei! - Uma voz masculina vem de lá de fora. Jasmim se vira e vê o enfermeiro de outro dia. - Finalmente achei você! Lembra de mim, Jasmim? Sou Pietro, a gente se conheceu semana passada, lembra? Nossa, deu trabalho achar sua loja!
- Minha loja?!
- Não é aqui?
- Obrigada. - Jasmim fala para a vendedora, que mal consegue disfarçar o riso, indo para a porta em seguida.
- Ei, me espera! Aqui não é sua loja?
- É do outro lado da cidade.
- Ih, não brinca... Por isso eu não achava!
- ...
- Ei, eu te levo lá! Vamos! Estou de carro.
- Não, obrigada.
- Por favor!
- Não.
- Vá, por que não?
- Porque você é um idiota.
- Ah, e o que é que tem?
Jasmim ergue as sobrancelhas em resposta.
- Tá, eu perdi! Não sei dar respostas assim rápido! Você é boa nisso, hein! Vamos, é sério, eu te levo. É caminho.
- Está bem, está bem... Só se prometer duas coisas.
- O quê?
- Cala a boca e me deixa em paz.
- Claro! Minha boca é um túmulo!
Os dois entram no carro laranja e Pietro dá a partida.
- Sabe? Não entendo porque dizem que a boca é um túmulo. Não tem coisa escrita no túmulo? Então... E essa caixa? Você não larga dela, né? É como se fosse uma parte de você já. Acho que se você se separasse dela e blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá...
Olhos fechados procurando paz. Qualquer coisa que proteja daquela voz irritante do seu lado. "Tenho uma tia que é arquiteta, você deve conhecer, ela..." Sua paciência está no limite. "...muito engraçado porque tropeçou bem na hora que..." Já chega. Jasmim abre os olhos.
- O que é aquilo? - Pietro para seu carro cor de laranja. - Parece que teve alguma coisa ali!
Desce do carro e vai pela calçada em direção àquele estranho aglomerado de pessoas na calçada. Não demora muito, já está ele na janela.
- Jasmim! Você tem que ver isso...
- ...
- Tem um sujeito muito estranho morto ali.
- E daí?
- Daí que o cara é estranho mesmo, todo peludo e não tem cara de gente normal, não mesmo! Tão dizendo que é um lobisomem.
- Morreu, não morreu? Podemos ir embora?
- Mas Jasmim, você não percebe? Um lobisomem! Finalmente apareceu um! Ele pode revolucionar a ciência! - Pietro se empolga enquanto Jasmim olha ao redor na esperança de ver um táxi. - E ele pode trazer genes especiais, que ajudem a combater doenças. Eu devia patentear esse lobisomem...
Jasmim finalmente abre a porta.
- Isso! Vem ver! É estranho!
Ela se levanta, já com a caixa nas mãos. Olha para o lado e vê Pietro se dirigindo novamente àquele grupo de pessoas. Ela não se levantou para ver o tal do lobisomem morto, mas para procurar um táxi. O peso da caixa em suas mãos lhe faz pensar... Seus olhos azuis fixam na textura de madeira, marrom, e ela se dá conta de que qualquer coisa não natural agora pode ser da conta dela mesma. Ergue o rosto para a multidão, então olha para o outro lado. Suspira, fecha a porta do carro e caminha, com a caixa. Vai ver do que se trata esse lobisomem idiota afinal.
Seus passos são lentos e o grupo de pessoas ainda está lá à frente. Há um problema nessa decisão. Digamos que multidão não é exatamente o tipo de coisa que combine com ela.
Não que se possa chamar umas trinta pessoas de "multidão", mas para Jasmim isso já é gente demais. Ela se aproxima devagar, tentando ver o corpo sem que precise entrar nesse amontoado de pessoas.
Não parece tão grande, mas é peludo. Não parece ter feridas. Um pelo castanho, como um lobo bípede. Sim, pois suas pernas e braços se estendem pela calçada como os de uma pessoa, mesmo com o pelo preenchendo todo o corpo.
Parece ter uma espécie de focinho ao invés de simplesmente um rosto. Não um avanço pequeno da região da mandíbula como nos primatas. É quase mesmo como um focinho de lobo.
Seus pés também são diferentes. Têm garras e o o formato de quem anda na ponta dos pés. Mais como um monstro mesmo do que uma bailarina. Suas mãos são grandes e com unhas cônicas e dedos grossos e, ao contornar a multidão olhando de vários ângulos, nota: sem anéis.
- Você viu daí? Não quer ver mais de perto? - É Pietro, que se aproxima de Jasmim. - Não precisa ficar com medo, ele nem está respirando...
Jasmim simplesmente se vira para ir embora. Medo... Medo!? O que é um animal peludo para quem semana passada lutou contra um homem de fogo?
- Ei, Jasmim! Espera! Eu prometi que te levava em casa! Vamos agora!
Como Pietro passa por ela e já vai em direção ao carro - e não parece vir nenhum táxi por essa rua -, Jasmim resolve continuar a viagem com ele mesmo. Já no carro...
- Olha, estou sem palavras...
- Não tenho essa sorte.
- É sério! Um lobisomem! Aqui!? O que ele tava fazendo? Deve ter sido ele que sumiu com aquela família outro dia... Mas você nem viu direito, né? Eu disse, não precisava ficar com tanto medo! Vou confessar uma coisa: eu tava morrendo de medo também. E se ele se levanta e sai correndo atrás de mim?
- Nem lobisomem teria esse interesse.
- Que bom! Também tinha muita gente lá, né? E se ele ataca? Tenho um medo dessas coisas... Ele podia estar fingindo de morto, mas não, não estava. De que será que ele morreu?
- Aposto que foi depois de uma conversa com você.
- Não, ele já estava morto. Tanto que tinha aquele monte de gente ao redor... O pessoal do hospital não vai acreditar quando eu disser que vi um lobisomem! Estava pensando... Se ele estivesse só doente, quem ia tratar? Veterinário ou médico?
- O mesmo veterinário que cuida de você.
- De mim mesmo não! Ha, ha! Gostei hoje! Você está conversando mais!
"Dar fora também não funcionou. Será que se eu meter a morningstar na cara dele ele cala a boca?"
Anna olha para o relógio. Já passa do meio-dia. Um carro laranja para logo em frente. Dele descem Jasmim e Pietro. Jasmim não parece trazer uma boa expressão.
- Oi, menina! - Pietro cumprimenta a Anna, esta lhe dá um sorriso simpático instantâneo que logo se desfaz e se volta para Jasmim.
- Como foi lá? Conseguiu?
- Bom, gente, vou indo então! - Pietro de novo. - Depois passo aqui de novo pra gente conversar mais!
- Nada ainda, Anna. Pode fechar a loja e ir pra casa almoçar.
- Ah, vou pra casa hoje não. Tá chato o clima lá. Vou almoçar aqui perto.
- Faça como quiser.
- Ei, espere!
Jasmim, que já ia em direção à escada, volta com sua caixa.
- Olha, aconteceu uma coisa estranha hoje de manhã. Preciso dizer uma coisa... É... Como é que eu digo...
Jasmim se senta ao balcão e Anna se senta do outro lado, claramente nervosa, com as mãos juntas presas entre os joelhos.
- Bom, é que pela manhã, logo cedo, apareceu um cliente. E ele levou aquele criado-mudo que estava ali, lembra? Aquele antigo e... Bom, ele pagou! Em dinheiro!
Enquanto Jasmim simplesmente acompanha o que Anna diz, curiosa com a conclusão a que chegará, Anna para um pouco para roer as unhas, com as sobrancelhas arqueadas.
- Bom, não sei se fiz bem...
- Vendeu por quanto?
- Por 1.500 rublos, que era o preço que você tinha dito, sem o desconto porque ele nem pediu... Bom, ai... Você vai me matar...
- ...
- É tão bom trabalhar aqui... Acho que fiz uma besteira...
- O que fez?
- Não... Não olhe assim! Eu fico mais nervosa! - Responde Anna, quase chorando. - Se fiz besteira juro que pago, desde que você divida e não seja de uma vez. Por favor não me manda embora!
- Conta logo o que você fez!
Anna caminha até a gaveta do balcão onde Jasmim está e tira um pequeno pacote enrolado em jornal.
- Olha, é que apareceu um rapaz vendendo isso e como você falou que o sonho era com anéis e ele não quis vender mais barato... Não me demite!
Lá estavam eles. Tão nítidos quanto no sonho. O anel de cobre com cristais brancos e a aliança de cobre e prata.
- Desculpa, por favor! Eu sou doida mesmo! Fiquei impressionada quando você falou dos anéis e você nem dormia nem nada! Ele veio e disse que eram da avó e estava...
- São estes...
- ...Precisando de...
Anna enxuga as lágrimas que já começavam a fugir dos olhos e se deixa cair sentada na cadeira onde estava antes.
- Não ficou com raiva de mim?
- Não, Anna. - Jasmim responde séria, mas com a voz calma. Como a voz de um monge. - Você fez o melhor que podia ter feito. Os anéis são exatamente estes.
- Nossa! - Anna apoia o queixo sobre as mãos, com os cotovelos no balcão. Seus olhos verdes ainda úmidos brilham fascinados. - Foi o que pensei na hora. Quando ele foi embora foi que fiquei nervosa, com medo de não serem eles...
Jasmim os observa suspensos por suas mãos.
- São bonitos... Vai usar agora?
- Ainda não. Tenho que saber o que fazem.
- Como assim?
- São mágicos.
- Como o Senhor dos Anéis?
- Mais ou menos...
- Nossa... - As duas olham os anéis por mais um tempo. - E agora você está com os anéis... Você tinha dito que ia testar se os sonhos eram verdade, não foi? Pelo jeito eram... Já sabe o que vai fazer agora?
- Ainda não, mas vou descobrir.
- Que incrível!
- Anna?
- Diga.
- Vai almoçar onde?
- Ali no Restaurante Prato do Dia.
- Fecha a porta lá na frente e vamos lá pra cima. Você almoça comigo hoje.
- Sério!? - Os olhos de Anna se enchem de lágrimas novamente. - Poxa, Jasmim, assim eu me emociono. Trabalho pra você há mais de ano e você nunca me chamou pra almoçar...
"Verdade... Mas já passa de uma hora, além do mais ela tem se mostrado uma pessoa confiável."
- Então, vamos?
- Vamos! - Anna vai fechar os portões enquanto Jasmim se dirige à escada.
- Que ódio! O que é que eu fiz pra merecer esse irmão idiota?
É cedo da manhã. Quase ninguém caminha por esses lados de Volgogrado a essa hora. Só uma garota de blusa verde e calça preta, falando sozinha. Anna.
- E a mãe e o pai ainda defendem! Que ódio! Ele pensa que é o dono da casa! A TV, o sofá, tudo! E ainda fica com piadinha...
Ao dobrar a esquina, entre terrenos com árvores e poucos prédios, avista a loja aberta e Jasmim na porta, impaciente.
- Jasmim! O que houve?
- Outro sonho. Cuide do antiquário.
- Mas...
- Quando voltar eu conto. - E sai carregando a caixa pela rua.
Mais um anel. Dessa vez um anel que ela já viu. E pior, na loja da Anastasia. Aquele estúpido anel de prata, que a dona até chegou a lhe oferecer. "Combina com tudo..."
Ela que queria nunca mais precisar voltar... E com que cara vai olhar para Anastasia e dizer: "quero levar aquele anel de prata"?
- Que mundo louco, né? Você soube que lá perto de cemitério o povo está se mudando? É, que mundo louco... - É o taxista gordinho e bigodudo. Às vezes alguns taxistas gostam de conversar. Jasmim às vezes tem a sorte de achar um desses.
Mas ela permanece em silêncio, pensativa. Com uma camisa preta escrita em relevo e em azul "Unicorn", com estilo de letra rebuscado e de ar medieval. O cabelo preso e em seu colo a caixa com a morningstar.
- É, moça... Esse mundo tá estranho demais... Sabe que outro dia um passageiro disse que viu um lobisomem morto na calçada... Vê se pode! Um lobisomem... E o Isaac, colega da gente, que diz que foi mordido por um vampiro...
As casas passam do seu lado. Estranho... Não dá pra saber se foi a forma como ela vê o mundo que se modificou, mas tudo parece um tanto diferente do que sempre foi. Muitas pessoas nas ruas têm um olhar e comportamento estranhos. De uma forma sutil.
- Tem visto o noticiário? É, você tem cara de ser uma moça instruída, deve ter visto sim. Quem diria, né? China e Japão em guerra de novo, só pra variar... Espero que não inventem de colocar a gente no meio.
Jasmim continua olhando pela janela. Não vê a hora de chegar na loja pra tentar levar o maldito anel. E o que vai dizer exatamente? Anastasia vai querer vender? Provavelmente vende, mas vai tentar se vingar no preço.
- Está vendo uma fumaça ali no céu?
O taxista chama a atenção para uma fumaça que se dispersa pelo ar, não deve vir de muito longe.
- Sabe? Tenho uma filha da sua idade. Ela faz Biologia. Todo dia tem uma história nova pra contar... Olha, parece que o incêndio é no antiquário que você queria ir...
A fumaça sobe densa da loja de Anastasia, bem mais adiante na rua por onde vão.
- Maldição!
É cedo da noite. Jasmim já jantou e sentada em sua cama pensa em tudo o que passou no dia.
Os policiais vieram interrogá-la durante a tarde. Foi como soube que a dona e a filha morreram no incêndio e que a grade da porta dos fundos estava cortada ao meio. Do mesmo jeito que o ferrolho da sua janela estava quando houve o incêndio na sua casa dias atrás.
Parece claro que se trata de uma mesma pessoa nos dois casos, mas a polícia é estranha: "estamos tendo muito incidente em museus. Não dá pra dizer muita coisa. Estamos investigando."
Não restam dúvidas a Jasmim de que mais alguém está recebendo as mesmas informações que ela tem recebido através de sonhos. Ficou claro agora: foi em busca da morningstar que invadiram seu antiquário. E agora, seja quem for, conseguiu levar o anel de prata. Só não tem tanta raiva assim por nem fazer ideia de pra quê exatamente ele serve.
Seus dedos passeiam pela bola de aço com pontas e ao deslizarem para o cabo Jasmim percebe símbolos. Dois símbolos, um acima do outro, os dois próximos à bola.
O primeiro lembra o símbolo de Apolo, deus grego. Um círculo com um ponto no centro. O segundo lhe lembra o Olho de Hórus. O que um símbolo grego e um egípcio fazem num mesmo objeto? Claro que podem significar outra coisa...
Estavam lá antes? Provavelmente não, pois Jasmim simplesmente não se lembra deles. E quem lida com antiguidades desenvolve uma atenção especial para símbolos.
Mas decifrar estes símbolos não importa agora. O que preocupa Jasmim é mais alguém saber dos seus sonhos. Alguém que tem seus próprios truques e está movendo as próprias pedras. O jogo está seguindo.
Mas já é tarde. Jasmim se deita e se cobre, sem se afastar da morningstar, na esperança de ter finalmente uma boa noite de sono.
Um vento frio passa por seu corpo num estranho assovio. Em um segundo Jasmim está de pé com a morningstar nas mãos. Antes mesmo de sentir com clareza que estava deitada sobre pedras. Antes de perceber que está tudo escuro. Como um soldado veterano e paranoico, lá está em prontidão tão logo se percebe consciente.
A névoa chega até seus joelhos como o gelo seco de uma casa de shows e, ao seu redor, nada. Apenas céu escuro sem estrelas e névoa, que se estendem indefinidamente até onde seus olhos são capazes de enxergar.
- Sim, você está sonhando. - É uma voz aguda que preenche todo o lugar.
Jasmim se vira rapidamente para vários lados, tentando descobrir quem fala.
- Acalme-se, Jasmim. Você está em um sonho. - A voz volta a falar. Parece não vir de nenhum lugar em especial. Após o que parece um suspiro, a voz tão estranha, que não se parece com nada humano, continua. - Se continuar agitada assim, vai terminar acordando. E não te falo o que preciso falar.
Jasmim abaixa a morningstar até encontrar as pedras. Então percebe que está utilizando os dois anéis. Enfim nota-se sem roupas.
- Os anéis... Sei que quer saber sobre eles, mas tudo a seu tempo.
- Quem é você?
- Chamo-me Klaitu.
Jasmim olha para cima com mais calma. Não há nada mesmo além de escuridão.
- Você foi escolhida para uma missão. Um mal que deve acabar e para isso é que você tem tido esses sonhos estranhos. Essa arma que você carrega é uma arma mágica, como você já deve ter percebido.
- Os símbolos...
- Vejo que entende bem o que quero dizer. Quanto aos símbolos, ela esteve sem uso por séculos. Suas habilidades ainda estão despertando, pouco a pouco. Vejo que já despertaram duas! Você não notará tanta diferença nessas habilidades, só se ficar sem elas por qualquer motivo. A morningstar te protege de golpes, mas não é muita coisa... E você pode ver o que não quer ser visto.
- Pode ser mais claro?
- Há magias que conferem invisibilidade. Elas serão em vão para os seus olhos enquanto você estiver com a arma em mãos.
- Tá, e o que é pra eu fazer?
- Calma, Jasmim...
- Ou você bolou esse sonho nesse cenário idiota só pra se apresentar sem nem mostrar a cara? O que quer afinal?
- Não gostou do cenário? Tão simétrico, sutil, sem desviar a atenção, bem iluminado... De outra vez tento um cenário melhor.
Na falta de quem encarar, Jasmim baixa a cabeça, de olhos fechados, tentando conter sua irritação.
- Klaitu!
- Está bem, está bem... Na verdade vim só me apresentar mesmo e explicar seus sonhos, o que está acontecendo, essas coisas... Mas parece que você não gostou muito, né?
Jasmim olha atentamente os anéis em seus dedos, já sentada, como forma até de tentar se acalmar.
- Os anéis... Os anéis... Se quer um conselho, não use agora. Eles serão muito úteis no momento certo. Se usar agora, provavelmente trarão mais problemas do que ajuda. Vai por mim! Sei o que estou dizendo.
Jasmim franze a testa e começa a tirar os anéis.
- Calma! Isso não vale praqui não! Aqui é um sonho! Estou falando para não usá-lo no seu plano!
- Escuta aqui, Klaitu. Tem algo importante a dizer ou era só isso?
- Bom, pelo jeito estou te aborrecendo, né? Desculpa, mas eu tinha que falar com você em algum momento, né? Bom, deixa ver... Ah, sim, você vai ter que viajar.
- Pra onde?
- Ah, mas não é agora... Ainda tem coisa pra resolver por aqui.
Um suspiro que mais parece um bufar de algum animal selvagem. É Jasmim, apertando o cabo da morningstar com as duas mãos, e um olhar furioso.
- Tá, eu sei que sou eu que estou preparando esses seus sonhos, mas só sou um, né? Se eu tivesse todo o plano traçado, mandava tudo de uma vez. Sei que você...
Na escuridão do seu quarto, Jasmim se levanta segurando ainda a arma. Vestida de pijama do mesmo jeito que quando foi dormir. Caminha em direção à cozinha.
Um copo d'água, um comprimido. O timbre agudo de Klaitu ainda ecoa, e só piora essa dor de cabeça que apareceu.
"Que droga! Não perguntei sobre quem mais sabe dos sonhos!"
Volta em passos lentos para sua cama, onde pretende descansar o que lhe resta de noite. De preferência, livre desse tal de Klaitu.
- Nossa! Sério!? Não acredito!
- É verdade.
- Nossa, Jasmim! Que incrível!
- Por isso não gosto de falar dessas coisas. Parecemos duas madames no salão de beleza fofocando...
- Ah, Jasmim, também não é por aí... Você devia ficar mais animada! Você descobriu muito sobre esses sonhos de uma vez só!
- O que eu descobri? Que quem prepara esses sonhos é um idiota?
- Ah, não fala assim do Gládio, vai...
- Klaitu.
- Sei, mas ele que tem guiado você, né?
Jasmim suspira. Sim, é verdade. E ela só não se livra da morningstar e esquece tudo isso por querer tanto acabar logo com isso pra que o mundo volte ao que era antes.
Estão no antiquário, sentadas ao balcão. Anna com uma blusa laranja e short branco. Com um laço laranja escuro na cabeça e olhar nas nuvens, pensando nos sonhos de Jasmim. Esta, do contrário, permanece séria, com sua camisa cinza mostrando dois pinheiros verdes, um mais claro que o outro. Diante dela, a caixa de madeira. Que lugar mais seguro acharia para guardar a arma do que perto de si mesma? Claro, os anéis estão em uma pequena bolsa no bolso de suas calças jeans.
- Nossa, e a arma? Ele falou alguma coisa da arma?
- Nada muito importante.
- Disse que é mágica, né?
- É, mas os poderes dela ainda estão aparecendo.
- Hmmm... Você vai ter mesmo que usá-la?
- ...
- Digo, lutar com a arma. Iá! Sabe? Será que você... Não sei, os guerreiros antigamente treinavam muito pra poderem usar um negócio desses, né? Será que você consegue? Não, quero dizer, sem nunca ter lutado, né? E...
- Eu já usei.
- Quando?!
- Na universidade, quando visitei o professor. Não contei?
Não, não contara. Pouco tem falado com Anna desde que a conhece. Somente nos últimos dias é que têm conversado sobre os sonhos e o que está havendo com o mundo... E Jasmim ganha uma fã.
Já coberta e deitada na cama, Jasmim sorri discretamente. É inacreditável a empolgação da Anna. Sorri ao se lembrar de como Anna se levantou e como reagiu ao que Jasmim narrava do confronto com o homem de fogo. Parecia uma criança de cinco anos assistindo ao filme do seu herói preferido.
Sorri, mas não é por vaidade. Sorri como a mãe daquela criança de cinco anos que assiste ao filme feliz. Mais contagiada pelo entusiasmo do que outra coisa. Enfim, fecha os olhos e, com a mão direita tocando o cabo da morningstar, adormece, deixando o quarto e as coisas do mundo temporariamente para trás.
Mais um anel. Parece feito de osso, com o desenho em relevo de um crânio humano. Silêncio, escuridão e frio. O anel gira no ar como em um comercial de joalharia. Um baú de madeira desgastada se fecha prendendo o anel. Está numa parte da parede de uma sala pequena... É dentro da...
- A capela! - Jasmim desperta. Sim, é na pequena capela do cemitério que está esse anel de osso. Ela sabe exatamente qual a parede e poderia até descrever o baú e estipular seu valor.
Ela se levanta e caminha até a sala com a morningstar e um livro. Acende a luz e se senta no sofá. Caso tivesse um carro iria para o cemitério agora mesmo. Mesmo sendo ainda três e meia da manhã. Mas não tem carro, nem muito interesse em aprender a dirigir. Depois que seus pais se foram em um acidente ficou esta, entre outras feridas que Jasmim evita revelar. Nada de automóveis, e ela segue lendo Dostoiévski até o nascer do dia.
Uma carta de baralho. A rainha de espada levemente inclinada para a direita, com fundo azul escuro atrás da carta bege. É a camisa de Jasmim, enquanto espera Anna já com o antiquário aberto, já pronta como noutro dia. E ela não demora a chegar, vestida em tons pastéis.
- Nem preciso perguntar, né Jasmim? Ou foi mais um sonho ou não me chamo Anna, pra estar aberto tão cedo...
Jasmim se levanta e pega a caixa de madeira.
- É, como eu pensei. Vai pra onde dessa vez?
- Pro cemitério.
- Ai, não brinca! Cuidado! Dizem que tem fantasma por lá. Tem uma tia de uma amiga que morava lá perto e se mudou semana passada porque não aguentava mais.
- Não se preocupe. Eu sei o que estou fazendo.
- Verdade. Você sempre sabe, né? Queria ser assim... Às vezes penso que minha vida é como uma canoa no mar e eu só vou indo e indo...
- Está chorando?
- É... Meu irmão lá em casa. Liga não, vai! Estou te atrasando.
- Então já vou. Se recupere. - E vai em direção à porta.
- Até mais, Jasmim! Boa sorte! E cuidado!
Jasmim deixa a loja e Anna se debruça em lágrimas sobre o balcão.
- Eu vou matar aquele moleque idiota...
Cabelos dourados enrolados e firmes por dois hashis. Uma camisa azul escura e braços sustentando uma caixa de madeira. Entre a camisa e o cabelo, um rosto com expressão decidida, olhando o cemitério. Barulhos estranhos que vêm de dentro não a assustam.
Os portões estão abertos, tudo está bastante iluminado. Tênis cinza caminham pela estrada que leva à capela. São os pés firmes de Jasmim. Bac! Seu lado direito. Um jarro de flores está no chão, próximo a um túmulo. Jasmim continua.
Bac, bac, bac... Ao longe, perto do muro, vasos caem sozinhos de cima das criptas. Parece que alguém não está feliz com a visita repentina.
Ainda está à metade do caminho, mas Jasmim coloca a caixa no chão e a abre. Tão logo tem a morningstar nas mãos, seus olhos começam a perceber formas. O cemitério está cheio de pessoas agora. Crianças, velhos, homens, mulheres... Caminhando por todo o lugar. Alguns com expressão de raiva no rosto.
"Ver o que não quer ser visto..." As palavras de Klaitu vêm à sua mente.
Ao seu redor, aos poucos, essas pessoas param e a observam atentamente. Perceberam que agora são vistos. Jasmim simplesmente prossegue, de olho nesses estranhos moradores. De sua testa algumas gotas de suor já começam a correr. Não consegue esconder a preocupação. Fantasmas? Não é isso. É que é gente demais! "Por quê que eu fui pegar a morningstar?" Seus passos se apressam e ela ainda ouve risos e conversas.
Jasmim corre. A caixa ficou para trás no chão, vazia. Em sua frente, a capela aberta.
Medo e passos largos. Enfim, consegue entrar. Não há ninguém dentro da capela além dela própria. Ninguém mais, vivo ou morto.
Seus olhos procuram a parede certa, enquanto caminha ainda tensa e ofegante. Por um instante sua vista fica escura, mas logo volta: tem que continuar.
- Não!
Um quadrado perfeito na parede é o buraco no lugar exato do seu sonho. No chão, ali perto, um baú jogado, quebrado, vazio.
Milhões de coisas passam na sua cabeça. "De novo." "Será que você consegue?" "Tem gente demais" Sua vista fica escura novamente e Jasmim se apoia na parede para respirar. Pela janela, uma multidão olhando para ela de maneira curiosa e penetrante, fazendo com que se sinta nua diante daqueles tantos olhos. É a última imagem antes que fique tudo escuro de vez...
Jasmim abre os olhos. Tudo está claro demais. Muita luz. Suas pupilas vão se acostumando...
- Oi! Você está bem? - Essa voz soa familiar. A imagem finalmente começa a se tornar inteligível.
- Pietro...
- Jasmim! Você acordou?! - Vira o rosto para ver aqueles olhos brilhantes e úmidos. Não precisaria se virar para reconhecê-la.
- Anna... Onde estou?
- De volta onde nos conhecemos! - Pietro se intromete. - No Hospital Santa Brígida!
- Anna, e o antiquário?
Anna responde com um sorriso terno e mais uma lágrima corre de seus olhos verdes.
- Jasmim... - Ela abraça a paciente, deixando-a sem ação. Depois se afasta, enxugando o rosto, e começa a explicar. - Desculpa... Fiquei muito preocupada com você, faz mais isso não, tá? Fui almoçar e você nem tinha chegado e...
- Se quiser, eu continuo! - Pietro interrompe e Anna faz sinal para que ele conte o resto, enquanto vai para o sofá enxugando as novas lágrimas.
- É, Jasmim! Eu resolvi ver você hoje à tarde e parece que eu tava adivinhando mesmo, olha só... Você precisava ver... Sua irmã estava aos prantos. "Menina, o que houve?" "A Jasmim. Foi pro cemitério..." "Fazer o quê?" Eu perguntei. Quase que pergunto se você era gótica, vê só... Não, porque você é bem calada, né? Mas você não se veste só de preto, então acho que não é não... Sabe, tinha uma paciente que é gótica. Já tentou se matar três vezes a doida! Ela tem um piercing bem aqui e o cabelo branco. É, branco mesmo como albino, acho que descoloriu...
Jasmim se senta. Sente-se cansada, mas parece estar bem, de qualquer forma. A caixa está numa mesinha próximo à porta.
- Ela tem uma cicatriz na barriga de quando tentou se matar com uma faca, pode? De outra vez...
- Cala a boca, por favor! - Ela se levanta.
- Jasmim... - É Anna, já de pé também. - Não fala assim, ele salvou sua vida! Você estava jogada no chão lá na capela do cemitério quando ele te achou! Passou meia hora te procurando lá e só te encontrou três e meia da tarde, e te trouxe pra cá...
Jasmim olha para os dois, já sem a expressão levemente irritada de agora há pouco.
- Que horas?
- São oito e meia.
- Já vou.
- Ei, espera o doutor, minha filha! E eu te levo! Vou sair dez horas. Você devia aproveitar a comida daqui, é ótima!
- Sério, já vou. - E caminha devagar em direção à porta do quarto. Pega a caixa e confere o peso.
- Ei, Pietro, será que pode me dar carona? - Anna pergunta.
- Claro, moça! Só dez horas, tudo bem?
- Tudo bem.
Na porta, Jasmim para por alguns segundos e se faz silêncio. Sua intenção era de agradecer ao Pietro, mas por receio de que o "obrigado" termine lhe parecendo outra coisa, suspira e se vai.
Um vento sopra constante. O céu azul, sem nuvens. Tudo bem iluminado. Um início impenetrável de floresta de um lado. Do outro, ondas vêm até a areia da praia. Na areia, Jasmim.
Já faz alguns dias desde o incidente no cemitério e Jasmim respira o ar da praia. O vento sopra constante, tentando levar seus cabelos embora. Em suas mãos, a arma mágica. Tudo está bem iluminado, mas não há sinal de Sol.
- Klaitu...
- Oi, Jasmim! Tudo bem com você? - É a mesma voz aguda e estranha que vem pelos ventos, sem sinal de quem a produz. Sim, Jasmim está em um outro sonho.
Ela olha ao redor. Caminha até a parte onde a areia é mais úmida e se senta com a haste da morningstar descansando em seu colo. Como da outra vez, está sem roupas, apenas com os dois anéis mágicos nos dedos.
- Legal a praia, não é? Eu gosto de praia... A gente relaxa mais, se equilibra. Você pelo jeito gostou da ideia
Jasmim apenas escuta, permanecendo no mesmo lugar.
- Você deve ter notado que eu não coloquei o Sol. É que fiquei na dúvida se colocava o Sol nascendo ou à tardinha. Acho que ia ficar bonito colocar nuvens e o Sol se pondo, tudo alaranjado. Mas gostei desse jeito. O que você achou?
- Alguém mais sabe sobre a minha missão. - Jasmim responde friamente. - Quem é?
- Ah, Jasmim, eu sei. Temos o que conversar, mas no mundo dos sonhos o tempo passa diferente. Temos muito tempo ainda. Me diz o que achou do cenário agora. Melhorou?
- Isso não importa.
- Ah, pra mim importa. Diz, vai! O que custa?
- Olha, achei idiota, tá bom? Dá pra responder agora?
- Ah, você é complicada! Que tipo de cenário você sugere então?
- Um canto sem nada! Que saco! Uma sala vazia, sei lá!
- Ah, mas você sabe... É perigoso usar paredes em sonhos... Alguém pode se infiltrar e...
- Tá, tá legal! Use o que quiser, não importa! Só me diga quem mais sabe desses sonhos e porque você não falou nada antes?
- Está bem, vamos aos negócios então. Você quer saber porque algumas coisas sumiram quando você foi buscar, porque alguém chegou antes de você, certo? Pois bem, lembra que eu falei sobre sua missão? Tem um mal que temos que derrotar, pelo bem do mundo temos que nos livrar dele, sabe? E, bem, digamos que ele tem suas próprias forças e não vai ficar quietinho esperando a gente chegar de surpresa. Ele está se mexendo também e, enfim, é isso.
- ...
- Sabe, Jasmim, é uma corrida agora.
- E por que você não me disse antes?
- Ah, nem sei. Acho que esqueci. Mas também você fala como se a gente fosse colegas de academia que todo dia se veem! A gente só conversou naquele outro sonho, né?
- Se ele tem as forças dele, você tem as suas, certo? Quais são todas essas forças?
- Ué, minha força é você agora!
- Estou só mesmo?
- Não! De jeito nenhum! Eu estou com você!
- E ele?
- Ah, não sei. Mas deve ter alguém também interferindo em tudo.
- E por que eu?
- Como assim?
- De tanta gente no mundo, por que tinha que ser eu?
- Ora, porque tinha que ser você! Você é especial! Não me diga que quer desistir...
- ...
- Tá, estou brincando. Sei que você não é de desistir. Temos muito trabalho pela frente, mas no final vamos derrotar as forças de Melthoz.
- Quem?
- É o ser maligno que temos que destruir pra que o mundo tenha paz. A propósito, te trouxe aqui pra dizer algo importante desta vez. Já que falamos dos assuntos que você tinha em mente, vamos tratar dos outros agora. Bom, eu te disse que você ia ter que viajar, não foi? Pois é, está chegando o momento.
- Quando?
- Daqui a cinco dias você vai ter que partir.
- Onde?
- Bom, essa é a parte boa! Olha pra lá, atrás de você!
Jasmim se levanta e caminha em direção ao painel apoiado por um cavalete, onde está um mapa.
- Viu? Legal isso! Você nem imagina o trabalho que deu pra fazer esse mapa... Mas gostei do resultado!
- Turquia, é isso?
- Ah, não sei dos nomes não, mas deve ser. Você está nesse ponto verde oliva e tem que ir pra esse ponto azul celeste. Se você reconheceu então está tudo certo, é só ir daqui a...
- Ok, Turquia então.
"Din-don!" A silhueta de um lobo uivando diante da Lua Cheia. É a camisa vinho de Jasmim que, com o cabelo em trança, espera diante da porta branca de madeira. Expressão séria e pensamentos distantes. A caixa de madeira está no chão, bem perto...
A porta se abre e mostra uma mulher já de certa idade. De vestido verde e cabelos pretos, ela analisa a visita com cuidado.
- Professor Nicolau está? - Jasmim pergunta.
- Quem gostaria?
- Sou Jasmim. Ele sabe quem sou.
A mulher faz um sinal lento com a cabeça e, sem mudar a expressão no rosto, responde:
- Certamente. Eu também sei. - Abre a porta e a convida para entrar.
Passam pela sala com seus belos móveis, tomam um corredor e, enfim, alcançam a biblioteca, onde está o professor, sentado numa poltrona lendo.
- Bem? Tem uma visita pra você.
- Quem... Jasmim?
- Vou trazer chá.
Jasmim se senta na cadeira diante do professor enquanto aquela senhora deixa a biblioteca.
- Não está mais dando aula?
- É, Jasmim... Depois daquele acidente... Eu já podia estar aposentado há tempos, não tinha me aposentado ainda de teimoso. Depois daquilo decidi que já era hora mesmo de admitir a derrota pro relógio e viver quieto aqui em casa o que ainda me resta de vida...
- ...
- E quanto a você? O que te traz aqui?
- Estou indo à Turquia.
- Turquia... Já estive em Istambul. É interessante. Mas faz muito tempo que fui, depois o governo começou a incentivar as empresas e deve estar muito diferente hoje em dia... Não deixe de visitar Troia também, estive lá na muralha. Estar lá traz aquela história toda da guerra com os gregos pra cabeça da gente. É um lugar especial. Como sei que você gosta dessas coisas, dessas histórias de magia...
- Você não se lembra?
- De quê? Do acidente? Foi um começo de incêndio e qualquer coisa que você ache que viu foi provocada pelo stress. Sobre sua viagem, não sei se é uma boa ideia viajar pra onde quer que seja nos dias de hoje. Isso de guerras e confusões pode ser mentira, mas pode muito bem estar havendo alguma coisa lá fora. É perigoso.
- Preciso ir. Estou numa missão.
- Entendo. Espero que saiba o que está fazendo.
- Eu sei. - Jasmim se levanta. - Até mais então, professor.
- Ei, Jasmim! Nem faço ideia de que missão é essa. Nem sei o que há com o mundo. Mas se for pra fazer diferença e entrar pra História, você sabe que poucas mulheres conseguiram... Use isso como incentivo. Se você conseguir, seu nome terá um brilho bem maior sendo você mulher do que se fosse um homem. Boa sorte no que quer que esteja tentando.
- Obrigada.
- Ei, não vai tomar o chá? - A esposa do professor Nicolau chega à sala.
- Não, obrigada. Já vou.
- Mas isso é uma desfeita!
- Alina, não seja mal educada!
- Tudo bem, preciso mesmo ir. Obrigada.
- Sendo assim, deixe-me acompanhá-la até a porta.
As duas voltam pelo caminho por onde vieram. Ao chegarem à porta, Alina sai também.
- Jasmim... Não sei o que houve com vocês na universidade, mas imagino o que pode ter acontecido. Tenho visto muita coisa estranha ultimamente. Já joguei alguns artigos esotéricos fora. Nicolau não acredita nessas coisas...
- Queria não ter razões para acreditar.
- Entendo, deve ser um choque. Mas agradeça a Deus por saber um pouco da verdade, pelo menos. Você tem muita força, posso sentir. Uma força intensa e firme.
- ...
- O que você tem nessa caixa é mágico, não é?
- É, quer ver?
- Não, não precisa. Eu sinto daqui. É muito poderoso. Sabe, comecei a perceber essas energias faz pouco tempo. Mas é curioso. Você tem muito poder, tem que direcionar bem.
- Estou indo à Turquia, numa missão.
- Entendo... Bom, tenho que cuidar do almoço. Antes, deixa só eu te dizer uma coisa: o poder é seu. Quanto mais poder se tem mais sábio é preciso ser pra não ter risco de esse poder terminar trazendo sua ruína. Cuidado para não tentarem te controlar usando seu poder. Senão a culpa será sua também.
- Tudo bem. Estou indo acabar com isso pro mundo voltar ao normal.
- Não sei se isso é possível ou desejável mas, de qualquer forma, boa sorte!
São quase sete horas da noite. Rionskaya ulitsa, 37, Volgogrado. No primeiro andar, a luz da cozinha acesa ilumina lágrimas que fogem de dois olhos verdes. É Anna, que morde os lábios triste vendo Jasmim servir a mesa como se fosse tudo normal.
- Você vai mesmo embora amanhã?
- Vou sim.
- Jasmim...
Anna abaixa a cabeça chorando. É uma mistura de saudades com a percepção de que esta é uma despedida. E Anna fica pensando como Jasmim não chamou mais ninguém... Será que ela não tem mais ninguém? Amigos, parentes...
A mão de Jasmim toca a cabeça de Anna, sem jeito.
- Calma, vai ficar tudo bem.
Os olhos cheios de lágrimas se erguem um pouco. Logo Anna está abraçada a Jasmim, ainda chorando.
Jasmim, surpresa, aproxima devagar as mãos dos cabelos de Anna, acariciando-os de leve. No que se lembra de Pietro no hospital outro dia e um leve sorriso nasce nos seus lábios. "Irmã..." Será que não está, sem querer, tentando fazer da Anna a irmã que nunca teve?
- Podemos jantar, Anna? - Ela fala, de modo suave.
- Nossa, Jasmim, você cozinha bem! E faz tudo sozinha!
De Jasmim, um movimento discreto dos lábios quase forma um sorriso.
- O que foi? Está preocupada com a viagem? Vai não então... Fica aqui e...
- Queria te pedir um favor.
- Um favor?
- Anna, você é a única pessoa em que confio hoje. Além do mais, pelo que você tem reclamado da sua casa... Bom, você não precisa fazer isso se não quiser. É sobre o antiquário. Vou te deixar as chaves e, se quiser, você pode morar aqui enquanto eu estou fora.
- Jasmim... - As lágrimas que tinham dado trégua voltam aos olhos de Anna.
- Mas é só se você quiser, você não precisa...
- Você é tão legal!
- ...mas claro, independente disso, você vai ter que cuidar dos papéis da empresa.
- Mas eu não sei fazer isso.
- É intuitivo.
- Sim, mas...
- Amanhã te ensino.
- Tudo bem... - Anna enxuga o rosto e, com novas lágrimas, fala após um tempo. - Sabe, Jasmim? Eu sempre soube...
Jasmim responde com um olhar de estranheza.
- Você é tão exigente, tão rígida, mas eu sei que é porque você quer tudo funcionando direito. Eu sempre soube que por trás dessa pessoa preocupada você era uma pessoa muito legal, incrível e... Calma, sua boba, não precisa fazer essa cara! Não tou estou dando em cima de você não! Ah, Jasmim, vou sentir tanto a sua falta... Posso te dar um abraço?
Já é meio da tarde. Da janela do ônibus, Jasmim vê Anna e Pietro acenando. Não é do jeito que ela queria, preferia simplesmente ir embora. Viria de táxi e partiria, simples assim. Mas Anna ligou para Pietro e pediu esse favor...
Também não queria ter que fechar o antiquário mais cedo, mas Anna quis se despedir e Jasmim preferiu deixar, mas não sem dar um sermão sobre o cumprimento de horários, na esperança de que tudo funcione de maneira adequada enquanto estiver fora.
O ônibus parte e ela se lembra da noite anterior. "Cuide do antiquário como se fosse seu."
Sua bagagem está em duas bolsas. Uma delas leva a morningstar. Uma bolsa larga, difícil de se encontrar à venda mas, como sempre, Jasmim programara tudo com antecedência.
O ônibus deixa Volgogrado e todo o seu mundo ali fica, pouco a pouco, para trás. No céu, o entardecer. O Sol nasce na sua camisa azul, presente surpresa de Anna e Pietro.
Seu coração espera ansioso pelo que o futuro lhe reserva. Ansioso, mas com toda a paciência do mundo.
Jasmim saca um livro de Stephen King. O ônibus leva poucas pessoas. Ao alcance da mão, uma bolsa que ela mesma trouxe. Uma bolsa de mais de um metro de largura, que descansa na poltrona ao lado.
- Klaitu!!!
Ainda é madrugada. Três passageiros mais próximos se viram para Jasmim irritados. Há quem apenas se mexa em seu assento.
Jasmim acordada olha agora a janela, quase escondendo sua raiva sob uma expressão calma.
Estava num parque e havia várias árvores estranhas, contorcidas. Elas começavam a perseguí-la até que Jasmim se via diante de uma mulher de orelhas pontudas. Ela veste farrapos esverdeados, mas tem jeito limpo e imponente, além de uma certa idade. Em suas mãos uma arma. Um pequeno bastão que termina em uma massa de metal. Parecida com sua morningstar, porém menor e sem as pontas. Após um olhar monstruoso da estranha mulher é que Jasmim desperta.
Mas este não é todo o sonho, nem ao menos toda a parte que Jasmim se lembra: ela sabe todos os detalhes. Como é a cidade, o caminho até o parque... Por pouco não sabe o nome de cada uma das árvores. Após uma semana inteira sonhando com a mesma coisa várias vezes por noite, estranho seria se fosse diferente.
Muita coisa estranha tem acontecido na viagem. O ônibus precisou desviar o caminho de uma cidade ainda na Rússia porque, ninguém nem imagina como, simplesmente a cidade não existia mais.
Em todo lugar havia gente desabafando seus problemas e Jasmim escutava de longe, por falta do que fazer, para ver se o tempo passava mais depressa.
Uma moça que perdeu sua família porque a casa pegou fogo de hora pra outra, um deficiente que jura que seu braço fora arrancado por um demônio, um paranoico se escondendo de um fantasma ou qualquer coisa parecida... Muitas histórias, nenhuma feliz.
Que viagem cansativa... São dois motoristas se revezando e as paradas são poucas e calculadas, apenas para refeição num descanso de uma hora. A viagem não para.
Felizmente já estão na Turquia, que era, afinal, seu destino.
Jasmim vê pela janela a noite escura. Seus olhos já testemunharam coisas estranhas, não foram só os ouvidos.
Faz duas noites que viu uma criatura monstruosa e gigante qualquer voando. Parecia uma espécie de inseto... Grupos suspeitos se reunindo em conversas, danças e comportamentos ainda mais excêntricos também têm sido comuns.
Dolores Clairborne já terminou faz tempo. Jasmim calculou bem o tempo que levaria para ler aquele livro, mas não conseguir dormir durante a viagem não estava exatamente nos seus planos...
Uma semana viajando dia e noite, sem ter mais o que ler, dormindo e acordando com o mesmo sonho porque Klaitu quer, não se sabe porque, que ela pegue uma arma. Mas Jasmim já tem uma arma, não? Isso tudo a incomoda e quase ela se arrepende de estar nesta jornada. Quase... Porque no fundo isso a motiva mais. Não vê a hora de cumprir logo sua missão para que o mundo volte ao normal.
Felizmente, amanhã almoçam em Pasinler e partem para Erzurum, destino final desta viagem.
Jasmim continua com os olhos presos na janela. Não vai mais conseguir dormir, mas pelo menos a viagem continua...
O almoço termina. Todos os poucos passageiros voltam para o ônibus. Russos, turcos, georgianos... O ônibus se afasta da plataforma onde estava, em ré. Sua manobra se completa e ele deixa a rodoviária de Pasinler, com todos, menos Jasmim.
Ela vê o ônibus ir embora do banco feito de cimento, na parede. Seus olhos se perdem no mundo por uns instantes, até que finalmente segura as duas bolsas e se levanta. Sua determinação nos diz claramente: esta é a cidade do parque e ela sabe como chegar até ele.
Não é tão fácil encontrar, mas logo ela está diante de uma pousada.
"Isso pode ser rápido ou demorar muito. Já são quase 2h. Dane-se o Klaitu, não vou viajar mais hoje."
Sai da pousada com uma camisa cinza escura escrito "Diamond 9" em preto, com brilho branco no fundo de cada letra e número. Em suas mãos, a bolsa onde guarda a morningstar. No bolso direito de sua calça jeans quase preta, os dois anéis dentro de um pequeno pacote. No esquerdo, uma chave presa a um chaveiro com o número 2. A camisa escura contrasta com o dourado de sua trança, que cai por suas costas. E ela caminha, chamando alguma atenção, mas quem disse que se importa?
Ruas de comércio pouco movimentadas, farmácia, supermercado... Uma escola à direita. O caminho é fácil e ela segue pelo que se lembra do sonho. O cuidado que tem é de gravar pontos de referência para conseguir voltar depois.
Adentra a área residencial. Crianças param de brincar na calçada para verem aquela mulher bela, séria e altiva passar.
As casas são relativamente simples e há pontos de venda improvisados em algumas delas.
Após dobrar uma esquina, sem nenhuma surpresa para Jasmim, o parque se mostra bem diante dos seus olhos.
Estranho como não há ninguém perto. Jasmim prossegue. Já é bastante tarde e se não resolver logo o que precisa, logo será noite na volta e simplesmente ela não faz ideia do que pode esperar caminhando à noite pelas ruas de uma cidade estranha em um país estranho. Então se apressa. Não por medo, mas por cautela. Afinal, se por acaso a noite cair e ela precisar voltar para a pousada, irá pelo mesmo caminho que a trouxe.
Seus passos firmes caminham por entre as árvores e lhe acompanha uma sensação estranha. A sensação estranha, mas não inédita, de que está sendo seguida.
É certo que algo não está normal. Essas árvores têm algum problema, ela sabe que têm.
"Eu me lembro desta." Encara uma árvore de forma ameaçadora. Ao se afastar mais, podia jurar que a árvore se mexeu. E ela continua, afinal sabe o que precisa encontrar.
Passo a passo os pés de Jasmim adentram a clareira. Um círculo sem árvores. À metade do caminho até o centro, ela para, de olhos fechados, sustentando a bolsa. O vento passa entre as árvores produzindo um som estranho.
- Não é comum que venham até aqui.
É a voz de uma mulher e Jasmim sabe bem que não pode ser outra senão aquela do sonho. Sua cabeça permanece ligeiramente curvada para a baixo, e seus olhos ainda fechados.
- Realmente é muita ousadia de sua parte. Quem é você afinal?
Jasmim é capaz de ouvir claramente as batidas do próprio coração aceleradas além do normal. Não é a rival que a assusta. É que ela não precisa abrir os olhos para perceber que há muito mais pessoas além delas duas, que a clareira está cercada por mulheres que a observam com curiosidade e certa dose de desprezo
- Entendo... Querida, você não sabe no que está se metendo. Me diga exatamente o que quer antes de eu decidir se te expulsaremos viva ou morta.
Tentando a todo custo manter seu ar frio, Jasmim ergue a cabeça. Com medo do que vai ver a seu redor, ela abre os olhos. O zíper da bolsa é aberto devagar.
Sua visão turva um pouco. Como suspeitou, é aquela mulher do sonho. Ao seu redor, várias outras mulheres vestidas de jeito parecido. Mulheres de orelhas pontudas vestindo farrapos verdes. Olha o chão. Os pés delas tocam o solo, como mulheres selvagens. Seu olhar sobe pelas pernas daquela mulher parada à sua frente. À altura do ventre param, ao se depararem com o objeto que ela segura com as duas mãos.
As palavras não saem, mas sua mão esquerda solta a bolsa e se ergue. Solta a bolsa com a mão direita enfiada dentro dela. Solta a bolsa para apontar para a maça que a outra segura. Sua vista começa a escurecer, mas Jasmim pisa firme e se esforça, mesmo já sentindo o suor frio pelo seu corpo.
- O quê?! Você quer minha arma? Não brinca, criatura... Invade nosso lar para roubar nossos pertences?
Jasmim abaixa um pouco a cabeça. Não são as palavras, são os muitos olhos sobre ela.
- Quem você pensa que é? Sabe que ninguém te atacou antes porque sentimos uma energia em você. Mas não é você, é só o que você carrega. Você quer mesmo me enfrentar, débil criatura? Você é só uma mulher...
Uma ligeira flexão nos olhos dá a Jasmim uma nova expressão, no instante em que a bolsa cai, já vazia.
Por "só uma mulher" aquela estranha queria dizer "apenas humana". Seus olhos mostram a surpresa. A invasora está vindo? Correndo com olhos raivosos e uma arma na mão!?
Um barulho alto de madeira. A rival fora atingida no ombro e se afastou um passo de onde estava. Seu ombro forma uma estranha visão. Um braço humano rachado e machucado qual madeira seca.
- Você é forte, tenho que admitir e...
Com a maça, ela bloqueia um novo ataque de Jasmim.
- O que quer afinal? Você é louca? Acha que pode nos derrotar. Que pode...
A frase é cortada no instante em que a morningstar lhe acerta o abdômen, fazendo-a recuar mais um passo.
- Agora chega.
- Aghhhh...
Jasmim cai a três metros de onde estava, rolando no chão, após o golpe acertar seu ombro.
- Você não sabe com o que está lidando. Parecemos mulheres porque quisemos assim.
De repente aquelas figuras femininas começam a inchar e se deformar, transformando-se em árvores. Somente a rival permanece em sua forma humana.
Jasmim se levanta, determinada, apesar da dor no ombro esquerdo. Será que quebrou alguma coisa? Não importa. Um leve e cruel sorriso se forma em seu rosto ao ver o sangue branco começar a sair do braço daquela estranha senhora da floresta. Sorri também porque não há mais uma multidão.
Jasmim salta, golpeando a rival que, desviando um pouco recebe o golpe no mesmo ombro já atingido, salvando-se por pouco de ser atingida na cabeça.
Dois estrondos rápidos. São dois golpes bloqueados pela morningstar de Jasmim.
Mais um barulho de madeira quebrando. Num golpe de baixo para cima, Jasmim acertou o rosto da outra, agora jogada no chão, com a face deformada e sangrando sangue vegetal.
"O quê é você?! Não pode ser o que parece... Só uma mulher..."
"Telepatia? Não vai mais falar comigo? Me chamar de louca?"
Jasmim dá dois passos na direção dela, tentando esconder o quanto dói seu ombro.
"O que você quer?"
"Essa arma." Lentamente empunha a morningstar, de modo hostil, como quem convida para mais uma rodada de batalha.
A outra se levanta com dificuldade e só então Jasmim percebe que o golpe chegou a tirar parte da cabeça dela. Há um buraco verde tomando quase metade do rosto.
"Vamos fazer um acordo. Deixe a gente em paz e pode levar a arma."
É noite. Num canto do quarto o guarda-roupas pequeno, próximo à porta. A cama fica encostada do outro lado, perto da janela de onde também se vê o banheiro. Entre a porta do quarto e a do banheiro, que ficam na mesma parede, uma escrivaninha. Bem ao lado, um frigobar. Na cama, é Jasmim que se senta aplicando compressa improvisada com gelo no ombro machucado.
"Se o Pietro estivesse aqui... É um idiota, mas é enfermeiro. Saberia dizer se eu quebrei alguma coisa."
"Por que aquelas árvores não lutaram? Será que a mulher era a mais forte delas e por isso tiveram medo de mim? Pelo menos a arma está aqui."
"Mas o que é que eu estou pensando? Se o Pietro... Ninguém precisa daquele idiota e claro que eu posso muito bem me virar sozinha!"
Jasmim deposita os panos molhados ao lado da cama, enxuga-se com um dos lençóis e se deita.
O vento vem e encontra Jasmim deitada na areia. A mesma praia e Jasmim sabe que está em mais um sonho.
- Oi, Jasmim! Que bom, viu só? Sua sorte está voltando!
- Klaitu...
- Tá, não vim dizer só isso não. Você vai precisar ir pra aqui perto, certo?
- Certo, fazer o quê?
- Depois dou mais detalhes. Ah, que bom que deu tudo certo, né? É sempre bom quando dá certo. Olha, estou estudando como é que faço um Sol, depois mostro o resultado.
- É só isso?
- Jasmim! É assim que trata um velho amigo? Eu tinha que dizer dessa outra viagem senão você ia embora pra Erzurum amanhã, né?
- Tá, mas faz um favor.
- O quê?
- Esses sonhos idiotas. Já cansei. Não sou retardada, me passe esses sonhos uma vez só.
- Mas é que você precisa...
- Klaitu! Uma vez só!
- Tá, tudo bem, se é o que quer...
No mesmo banco da rodoviária está Jasmim, sentada, de calça jeans e camisa azul com algumas linhas amarelas.
- Mulher, a Cindy é uma víbora! Aquilo não presta! - Duas mulheres no banco ao lado.
- Ah, mas ela deve estar falando a verdade agora.
- Está nada, mulher. Aquilo não tem coração! Uma mulher assim que não obedece ninguém... Não sei como o Paul ainda acredita nela...
- Mulher, será?
- É sim! Você vai ver se ela não vai trair o Paul.
- Por Alá... Será que a gente chega a tempo?
- Chega sim, já chequei isso. A gente vai chegar cinco horas, dá tempo de chegar e ver a novela.
Jasmim está sentada pela manhã no mesmo banco na rodoviária, de calça jeans azul e uma camisa cinza, com o desenho de dois pinheiros verdes.
- Você viu o Tayyp? - Um motorista do ônibus fala com um funcionário da mesma empresa. - Ele chegou há dois dias em Erzurum ou devia ter chegado... Devia estar aqui hoje, não é?
- Você não soube?
- Não me diga que sumiu o ônibus como o de Leonid e o de Recefa!
- Não, ele foi atacado por alguma coisa perto de Erzurum. Dizem que o ônibus foi todo fatiado e depois pegou fogo.
- Nossa! Quer dizer que...
- É, não sobrou um pra contar a história.
- Que terrível! Dá medo dirigir esses dias... Mas se não trabalhar não boto comida em casa.
Jasmim no mesmo banco. De jeans e uma camisa azul escura com o desenho estilizado de uma cabeça careca, concentrando-se apoiando a testa sobre os dedos.
- Tenho que ver a Beatrice.
- Ela está doente?
- Tive um sonho inquietante e preciso ver se ela está bem.
- Deve estar. Dê lembranças minhas a ela.
- E você? Por que viaja?
- Estou desempregado, você sabe. Antes que eu morra de fome, tenho que sair daqui.
- A situação está tão feia assim?
- Você não vê os noticiários? A culpa deve ser desse povo infiel americano que fica brincando com coisas sérias.
- É mesmo.
- Por isso o mundo está do jeito que está.
Jasmim desperta de repente.
- Sunak! - Deixa escapar, com expressão séria e um brilho nos olhos que nem parece que são onze horas e que ela estava dormindo desde as oito.
Jasmim chega à rodoviária de calça jeans e camisa turquesa, com a imagem de um lagarto preto e branco. Ainda é noite.
Caminha direto ao balcão de informações.
- Onde consigo passagem para Sunak?
- Olha, infelizmente não temos. A linha foi descontinuada há um mês.
- E como chego lá?
- Você não é daqui, certo? Bem, Sunak é pertinho. A senhora pode tentar um táxi, mas é melhor ir de dia que sai mais barato. Lá é perto mas dá umas horas de viagem.
- Obrigada.
- Boa noite. - Jasmim se aproxima do banco onde ficam os taxistas, do outro lado da rodoviária. - Preciso ir a Sunak.
- Fazer o quê? Lá está perigoso pra uma moça. - Um taxista idoso e de barbas longas responde.
- Ora, se vou pagar, então... Algum de vocês me leva lá?
- Muito perigoso.
- Eu preciso ir.
- Por que não espera amanhecer? Syoko deve estar aqui logo cedo e ele poderia...
- Olha, eu preciso mesmo ir lá. Eu sou uma cliente que está aqui querendo serviço de vocês, não conselhos. Vamos agir como pessoas de comércio, por favor!
- Tudo bem então. A verdade é que lá não entro. Não depois do que os jornais publicaram domingo. Você não leu? Tem demônios lá em todo canto.
- Eu preciso ir lá. Tenho algo importante a resolver.
- Você devia esperar o Syoko, já disse... Mas você não quer conselhos... - O mais velho se afasta.
- Olha, a dona precisa mesmo ir lá agora?
Jasmim responde ao taxista mais jovem com ar irritado de quem diz "Óbvio!".
- Também não entro lá não. Tenho toda a vida pela frente. Mas se não se importar, posso te levar até a entrada da cidade.
- Ok, vamos negociar os valores.
Os primeiros raios do Sol começam a diluir o que havia de noite. No centro da pequena cidade de Sunak, na Turquia, as árvores na praça são iluminadas aos poucos. Uma praça pequena e sem gente. E ali, logo em frente, um templo abandonado. Ou quase isso...
Entre escombros, uma mulher se levanta. Seu corpo tão bonito coberto por farrapos, poeira e hematomas. Ofegante, com seu longo cabelo loiro quase castanho a essa altura, ainda segura furiosa sua única companheira nesta batalha: um bastão que termina em uma bola de aço com pontas. Uma arma conhecida como Morningstar.
- Maldito Klaitu!
Mas Klaitu não é o nome daquele monstro de seis metros de altura feito apenas de pedra com quem ela luta desde quando ainda era noite. Nem se sabe se seu adversário tem mesmo um nome. Independente disso, ele agora se aproxima em investida. Jasmim simplesmente pula e coloca o Morningstar firme na frente, posicionando-se para receber melhor o golpe inevitável.
Estraçalha-se o portão principal num estrondo. É Jasmim que é arremessada de dentro do templo e cai de mal jeito mais uma vez, rolando no chão pela rua até a calçada.
- Maldito Klaitu...
Jasmim caminha diante do templo à noite, guiada por aquela estranha voz a que já se acostumou. Faz frio, mas ela está bem agasalhada. A voz é quase aguda, porém intensa. Fala de algo importante que o templo guarda, que a ajudará em sua missão. É a voz de Klaitu no sonho de Jasmim. Esse que tem aparecido cada vez mais em seus sonhos, mas sem mostrar nunca o rosto. Todas essas buscas sempre começam assim. Klaitu lhe diz como chegar onde precisa, desde que o mundo virou esse caos... Mas há uma parte em seu sonho que Jasmim esqueceu hoje. Nada muito importante... Apenas a parte em que Klaitu fala como derrotar a tal criatura de pedra.
Seu corpo todo dói, mas Jasmim não vai desistir agora. Sua mente analítica procura um ponto fraco na maldita criatura há mais de três horas. Já tentou de tudo: nenhum sucesso até o momento.
Sente a aproximação de um cavalo, ainda distante. Enquanto isso, lá dentro do templo continua o barulho de passos que lembra algo como uma montanha caminhando.
Ergue a cabeça e vê as árvores da praça. Já se pode ver a brita espalhada e os bancos verdes enferrujados com mais clareza a essa hora da manhã. A Morningstar é colocado de pé e, com a mão direita, Jasmim a utiliza como apoio para se erguer também. Suas pernas sem jeito procuram uma base firme, mas não tremem. Todo o corpo dói.
Um cavaleiro se aproxima pelo outro lado da praça. Vem contornando a calçada rapidamente, parando entre Jasmim e o templo. Desce do cavalo em uma armadura de samurai e com um conjunto de espadas.
- Não tema, senhorita, eu vim salvá-la!
Jasmim aproveita o raro momento distante do monstro para se certificar de que nenhuma daquelas tantas dores se deve a ossos quebrados.
Talvez em outra ocasião ela ficasse com raiva desse estranho cavaleiro com tanta prepotência. Não que seja de falar muito, mesmo em discussões. Mas hoje simplesmente olha o cavaleiro, que já caminha em direção ao templo, com desdém e um leve sorriso irônico no rosto, quase sádico. "Salvador..."
Mal empunha o morningstar com as duas mãos, já se preparando para mais uma tentativa, um estrondo vem de lá de dentro. O tal cavaleiro voa quebrando uma janela e subindo pelo menos oito metros antes de cair sobre um dos poucos bancos da praça. Ficou quase sem armadura atingido por uma única pancada e arremessado como se fosse um boneco...
- É isso!
Com um brilho nos olhos, Jasmim corre decidida para dentro do templo. Desvia de um soco da criatura e continua em direção à única escada que restou.
Sobe a saltos largos e vai em direção à segunda sala, onde tem uma grande escrivaninha, umas estantes próximas à janela e cadeiras espalhadas pela sala.
Em uma das estantes, Jasmim encontra um baú servindo de apoio lateral para os livros de uma enciclopédia. Corre com ele até a escrivaninha.
Uma parede cai. É o monstro, que tentou segui-la.
Do baú, Jasmim pega uma pequena estatueta. Uma miniatura do mesmo monstro que acabou de chegar.
Com passos firmes e ar triunfante, aproxima-se do monstro com a miniatura na mão. Enquanto o monstro se prepara para um golpe com o braço esquerdo, Jasmim arranca o braço esquerdo da estatueta. O braço esquerdo do monstro cai.
Sob seu rosto frio, a alegria e o alívio de essa demorada missão estar chegando ao fim. E Jasmim arranca o outro braço, as pernas e a cabeça. O monstro se desfaz como se nunca tivesse passado de um amontoado de pedras. O tronco da estatueta cai no chão.
Jasmim entra numa sala pouco iluminada e lá encontra, encostada num canto, uma roupa própria para batalhas, feita de couro e algumas penas mescladas, quase como escamas.
Jasmim sorri e se vai com o novo artefato, deixando a praça vazia, o templo quase todo destruído e um cavalo que ainda não se deu conta de que agora é um animal livre...
- Oi, Jasmim!
Seus olhos se abrem e veem o céu azul imenso. Azul claro. Um majestoso arco-íris paira ao lado. Majestoso e que age como fonte de luz.
Jasmim se levanta da areia vendo o "dia" nesse novo sonho. Perto dela, no chão, estão os objetos que ela conseguiu até agora. Tão logo se dá conta disso, toma para suas mãos a morningstar.
- Preparei uma brincadeira legal pra você hoje. - É a voz irritante de Klaitu, preenchendo todo o lugar. - Deu um trabalhinho fazer isso, mas acho que ficou legal. Não sei se você vai gostar, você nunca gosta de nada!
Silêncio por um tempo, apenas o barulho do mar. Jasmim permanece séria, de pé, com a morningstar na mão. Por sua mente, a preocupação: de que brincadeira idiota Klaitu está falando? Mas entre as possibilidades que imagina, já prevê mais ou menos do que se trata.
- Por exemplo. Viu o arco-íris que eu fiz? Ficou bacana, não ficou? Que assim eu não preciso fazer o Sol e ainda fica diferente, com estilo.
Mais silêncio. Sem resposta além da expressão fria de Jasmim, Klaitu prossegue.
- Está bem, está bem, vamos falar do que importa antes que você fique com raiva e se acorde. Hoje vou explicar sobre essas armas suas. Parece que você não gosta quando eu explico as coisas, então resolvi reproduzir as armas aqui no sonho pra você mesma testar o que elas fazem. Vamos começar pelo Corselete da Levitação. É essa peça de armadura aí que foi a última coisa que você conquistou.
Jasmim veste o corselete, enquanto Klaitu fala.
- Sabe que ficou bem em você? Se você cortasse o cabelo assim, na altura do pescoço, e colocasse uma tiara... Ei, menina, espera!
Jasmim desce flutuando de volta ao solo, após ter subido quase dez metros. Tira a armadura.
- Jasmim, você é muito chata! Nem deixou eu explicar. Tudo bem, pelo menos já sabe usar, né? Agora, olhe para trás e fique onde está.
Jasmim se vira rapidamente e vê, a quinze metros, uma naja de pé, do tamanho de uma pessoa.
- Calma, ela está aí só pra eu te mostrar uma coisa legal. Pensa que não sei que você ficou pensando "o Klaitu me fez vir aqui pra pegar uma arma e eu já tenho uma. O Klaitu é um bobão!". Agora você vai ver como isso aí é legal. Pegue ela, vá! É uma maça de guerra voadora. A maça é que é voadora, não a guerra, entende? Assim, agora mande a arma lutar contra a cobra! Precisa falar não, é só pensar mesmo.
A arma que pertenceu àquela estranha mulher-árvore deixa a mão de Jasmim e parte contra a naja. Ela assiste a arma atacando a criatura, que tenta se esquivar. Acerta o primeiro e o segundo ataques. Erra dois, acerta outros dois, erra um. Acerta dois, erra um e finalmente mata a criatura no sétimo ataque bem-sucedido.
- Só tem umas coisas. A arma não fica lutando muito tempo não. Pode ter vezes que ela lute por menos tempo do que lutou agora!
A maça voa rápido em direção a Jasmim e cai a alguns centímetros de seus pés.
- E a arma não "sabe" lutar. Ela luta com o conhecimento que você tem, viu Jasmim? Está ouvindo? Se você treinar bem muito, a arma vai ficar mais poderosa! E tanto ela como a armadura só podem... Ei, o que está fazendo?
Um anel em cada dedo médio. Os anéis parecem os mesmos de sempre, nenhum efeito aparente.
- É, eu sei que faltou falar dos anéis, mas eles são estratégicos. Além do mais, eles só farão efeito uma semana depois de você colocar no dedo. Esse sonho não dura tanto assim. Mas olha, não se preocupe que eu aviso depois quando for o momento certo de usar os anéis. Sei que você achou tudo muito chique e está doidinha pra usar, mas espere um pouco mais, tá? E eu vou sumir por um tempo, estou logo avisando. Sei que você vai morrer de saudades, mas não se preocupe que eu volto, tá? Enquanto isso, vê se aproveita e treina pra ficar mais forte, mais experiente, mais bonita!
Seu sentido de tato lhe diz que a morningstar continua em sua mão direita, antes que ela abra os olhos. Está no mesmo quarto de hotel, a diferença são os curativos, pomadas e tudo o mais pelo corpo, que ainda dói. O corpo todo.
"Então ele quer me dar férias com dever de casa, e quer que eu domine as armas antes do próximo estágio. Tudo bem, vamos fazer assim então."
O telefone toca impaciente. Um aparelho verde musgo com desenhos em relevo, de um plástico industrializado que finge ter sido esculpido.
- Alô!
- Pietro?!
- Jasmim!? Menina, você está bem? Que bom que está bem! Estamos com tanta saudade... Peraí! - Tapa o telefone com a mão e grita. - Anna! É a Jasmim! - Depois volta a falar no aparelho. - Ela está lá embaixo, atende já.
- Jasmim?!
- Anna...
- Jasmim! Como é bom ouvir sua voz! Por que não ligou antes? Estou morrendo de saudades suas, sabia? Está onde?
- Pasinler.
- Que legal! Onde é isso?
- Anna, o que está acontecendo? Por que Pietro atendeu o telefone?
- Ah, Jasmim, é que... Bem, a gente está namorando, sabe? Olha, tanta coisa estranha acontecendo por aqui que dá até medo de sair de casa, sabia? É bom mesmo ouvir sua voz... Ô, amiga, quando é que você volta, hein?
- Não sei.
- Volta logo, vai! A loja aqui está indo bem... A gente mudou umas coisas de canto, principalmente na entrada, pra dar mais atenção pra coisas pequenas, que a gente botou dentro de um armário desses de porta de vidro. Até que estamos vendendo, viu? Um pouquinho, mas...
- Que bom!
- É! Também consegui um conjunto inteiro de cozinha antigo num preço joia e está logo...
- Anna...
- Diga.
- O que o Pietro quis dizer com "ela está lá embaixo"?
- Ah, é que... Bem... Era pra ser surpresa, sabe? Mas você acabou descobrindo antes da hora! É que mandei fazer uma extensão do telefone pro seu quarto. Imagina! Agora no fim de semana e de noite você não precisa mais descer a escada só para...
- Anna...
- Oi.
- E o que o Pietro estava fazendo no meu quarto?!
- Jasmim... Poxa, você descobre tudo!
- Não chore, explique.
- Poxa, é que... Fica com raiva de mim não, viu? Jasmim...
- Anna... - Anna quase pode ver Jasmim apertando os dentes do outro lado da linha.
- Ah, Jasmim... É que a gente começou a namorar, sabe? Aí eu estou morando aqui porque você deixou, né? O Pietro quis morar aqui comigo também, mas eu disse a ele que você não ia gostar. Aí só deixei porque olha, fica com raiva de mim não, por favor! Eu disse pra ele: "Jasmim vai ficar uma fera. Só deixo se você me ajudar a fazer uma surpresa pra quando ela voltar. Uma reforma, coisa assim" e...
- Você está se prostituindo na minha cama?!
- Jasmim... Agora você...
Anna desliga o telefone em lágrimas sem conseguir mais falar.
Do outro lado, Jasmim abaixa um pouco a cabeça. Ainda com o telefone na mão, uma lágrima desliza por seu rosto.
De noite, na rodoviária, Jasmim tira mais uma vez o telefone do gancho e começa a discar.
- Alô?
- Pietro, passe para...
- Jasmim! Agora ouça. Não sei o que vocês conversaram que a Anna não quer dizer. Desde de manhã que está chorando. Nem almoçou, nem jantou. Só faz chorar e chorar. Se foi alguma coisa que ela fez de errado, me diga que eu ajudo a concertar. E se for por minha causa, me diga também que aí eu vou embora. Não quero que briguem e que a Anna fique triste assim e...
Jasmim ouve a voz de Anna falando com Pietro. Eles conversam qualquer coisa que não dá pra entender.
- Oi. - É a voz já fraca e sem vida de Anna.
- Anna, queria te pedir desculpas. Fui muito dura mesmo com você. O Pietro pode ficar aí sim por enquanto. Tudo bem?
- Tá.
As duas sustentam os telefones por um longo minuto sem palavras. Só se ouve soluços reprimidos de Anna e, às vezes, a respiração de Jasmim.
- Jasmim... Gosto de você... mesmo você sendo tão... má comigo... às vezes. Só queria ser sua amiga... mais que funcionária...
Mais algumas lágrimas fogem dos olhos azuis de Jasmim.
A bola metálica com pontas gira no ar. Mais um corpo é arremessado para longe.
É noite e Jasmim luta na rua contra corpos que andam. Com seu corselete de couro acinzentado, mas cheio de penas azuis mescladas ao couro. A maça de guerra presa à cintura por um cinto improvisado e sua calça jeans.
Mais um é atingido na cabeça, caindo ao chão, já sem vida ou qualquer imitação de vida que o animava.
A rua tem poucas árvores e prédios baixos, como parece ser toda a cidade. Foi difícil chegar aqui, mas se Klaitu queria treino, jornais servem pra isso.
O último zumbi cai e Jasmim vê um prédio de três andares logo à frente. Corre em direção a ele e seus pés deixam o chão. Ela sobe lentamente rumo à cobertura. Sua velocidade vertical segue constante, mas a horizontal vai diminuindo aos poucos. Enfim, alcança o telhado. Pelo visto a armadura é só para levitação mesmo, inapropriada para voos
A cidade está toda escura e não faz tanto tempo Jasmim ouviu alguns tiros.
Do telhado, vê a cidade sem luz. Pouco dá pra ver. Na outra rua há zumbis: ótimo. Jasmim salta e ativa mais uma vez a armadura para uma queda suave.
Tiros!? Sim, tiros vêm dessa mesma rua. Em direção a Jasmim.
Seus pés tocam o chão mais uma vez. Vários zumbis vão caindo, um a um. Os disparos continuam.
"São três armas, pelo brilho e distância entre disparos. Nove balas..."
Derruba o penúltimo zumbi, indo em direção à origem dos tiros. De cima do prédio viu que não devem ser muitos. Três ou quatro, apenas.
"Quinze..." Arremessa o último zumbi com um golpe na barriga. Saca a maça de guerra voadora, que deixa sua mão e vai em direção aos inimigos armados.
"Dezoito! Hmmm... Pararam, revólveres!" Jasmim corre então contra eles.
Sua trança dourada ondula e então... Mais tiros?! Jasmim continua, firme e veloz. As balas passam perto de seu corpo. Um barulho metálico diz que uma acabou de acertar o bastão da morningstar. Era a sexta bala.
A maça de guerra está parada no ar. E são dois orientais vestidos de preto. Em menos de um segundo, usando a bola da morningstar como contrapeso para uma alavanca, Jasmim golpeia um dos dois com o bastão na altura do abdômen e acerta as pernas do segundo, de trás para a frente. Logo estão os dois caídos de costas no chão, sem ação.
- Ela não parece um vampiro. - Um deles comenta com o outro, enquanto Jasmim recolhe e guarda a maça sem tirar os olhos dos dois.
- Wi, ela é boa! - O segundo comenta, pouco antes de receber um chute no estômago. - Arghhhh!
- Ha! Ha! Ai... Olha, moça... - É o outro que fala. - Houve um mal entendido, percebe?
- Quem são vocês?
- Sou Ceix Kao-Wi. Esse desmiolado é meu irmão, Ceix Aeze-Yo.
- Por que atiraram em mim!?
- Ah, foi mal, é que...
- "Foi mal" se diz quando se esbarra em alguém. Vocês dispararam vinte e quatro balas em minha direção, idiotas!
Os dois irmãos se olham, deitados, com as mãos na cabeça, enquanto Jasmim continua de pé, com a morningstar na mão e ar hostil.
- Bom, desculpa, moça. - É Kao-Wi mais uma vez. - É que a gente pensou que você fosse uma vampira, pra falar a verdade. Sabe como é, né? Pular de um prédio de três andares e sair correndo, desviando de bala...
- Wi, tem certeza que ela não é vampira? Arghhhh!
Jasmim acaba de dar outro chute na barriga de Aeze-Yo. "Eu devia usar coturno..."
- Entende, dona? Foi um mal entendido. Só isso. Não é nada cavalheiro atirar em uma moça distinta. Mil perdões, nós achávamos mesmo que era uma vampira.
- Wi, e se... - Kao-Wi dá um soco de leve no ombro de Aeze-Yo para impedí-lo de continuar e terminar levando mais um chute.
- Nós dois estamos numa missão de resgate de uns objetos importantes lá no meio da cidade. E a senhorita, o que faz por aqui? É a primeira pessoa viva que encontramos desde que entramos nessa cidade morta!
Finalmente Jasmim muda a expressão para uma menos severa. Dá espaço para os dois se levantarem.
- Estou só dando uma volta.
- Nossa! Wi...
- Bem corajosa você! Se quiser nos acompanhar nessa missão... Estamos sendo pagos pra isso. Se nos ajudar em toda a missão, podemos dividir o pagamento. Um terço para cada um. O que me diz?
- Vamos conversar melhor...
- É, vamos sim! Enquanto não vem mais vampiro... Ah, ainda não nos disse seu nome...
- Me chamo Jasmim.
- Quando eu quero, posso fazer um dardo ficar encantado. E ele fica mais perigoso. É por isso que eu ando com uma besta de mão.
É o mais jovem dos dois irmãos chineses, Aeze-Yo, enquanto caminham os três por ruas sombrias.
- Já tentou usar isso em balas? - Jasmim pergunta.
- Ah, não dá certo... Se elas explodem na hora do disparo? Porque o dardo está preso e esticado pra poder sair, né, mas no revólver precisa ter uma explosão pra poder a bala sair, sabe? Legal esse cachorro aí...
- Cachorro? - Kao-Wi se vira na direção apontada. Um cão magro de patas longas está parado ao longe, olhando para os três. Vira-se e vai embora. - Ah, Yo, é só um vira-latas.
- Aqui deve estar mais calmo que onde estávamos, senão não haveria cachorros nas ruas. - Jasmim comenta.
- Faz sentido.
- Jasmim? - Aeze-Yo se aproxima dela. - Não se preocupe que eu protejo você.
- Ha ha ha ha ha! - É Kao-Wi quem gargalha, ainda mais atrás. - Yo, mano querido, mal você consegue proteger o próprio traseiro!
- Wi, por favor...
- É a verdade, ué! Sou eu que te livro sempre! Além do mais, ela não me parece do tipo "donzela em perigo". Estamos todos juntos nessa missão e cada um deve ajudar o outro quando o outro precisar.
- Wi, só estou tentando ser gentil, sou um cavalheiro.
- Tenha cuidado com o tipo de cavalheirismo. Cavalheirismo demais com uma dama independente pode soar grosseiro. Escute seu irmão mais velho!
Os três param na esquina. Tudo está escuro. Ao se virar para Kao-Wi, Jasmim vê seus olhos brilharem vermelhos, enquanto ele parece estar tentando ver algo de especial nas ruas.
- Calma, não se preocupe, Jasmim. Este é o poder do meu irmão... Ele consegue enxergar no escuro. Sinistro, não é?
Ao tentar enxergar na direção que Kao-Wi examina, misteriosamente toda aquela rua escura muda de cor e tudo adquire tons azuis. E nesses tons azuis, Jasmim passa a enxergar com precisão, melhor até do que se fosse dia, muito provavelmente.
- Jasmim?
Ela olha nas outras direções e enxerga tudo. Alguns zumbis caminham calmamente e sem rumo na estrada à direita. Seus olhos baixam e encaram o cabo da morningstar. São quatro símbolos agora. O terceiro lembra um daqueles fractais de flocos de neve. O quarto que, sob esse prisma azul tem um brilho branco forte em suas linhas, também lembra o Olho de Hórus, como o segundo símbolo. Na verdade, agora Jasmim não consegue definir qual dos dois se parece mais com o símbolo egípcio, mas os dois diferem muito entre si.
- Klaitu... - Jasmim deixa escapar baixinho. "Por que não me falou dos novos poderes da morningstar?! Tudo bem, preciso de você não. Eu descubro sozinha!"
- Jasmim? - Kao-Wi chama e Jasmim ergue a cabeça no momento em que sua vista volta ao normal. Com olhar decidido, segura firme a morningstar e dá dois passos rumo à rua da direita.
- Ei! Não vá por aí! Aí tem...
- ...uns quinze zumbis. Por isso mesmo!
- Ei! - agora é Aeze-Yo quem protesta. - Como você sabe? Você enxerga no escuro também?! Mas que droga! Só eu não enxergo!?
- Você é cheia de surpresas, hein? Mas deixa, vamos por aqui porque é o caminho para a escola.
- Escola?
- A missão que estão pagando, lembra?
Jasmim para pensativa.
- Sei, ali tem zumbis e você quer matar as criaturas, mas se a gente for lutar contra todos os zumbis que aparecerem, não vai dar certo. Não vamos chegar nunca, pois o que mais tem nessa cidade é zumbi. Além do que terminaremos chamando a atenção dos vampiros.
Atenta, já de volta, Jasmim olha com curiosidade, esperando a continuação de Kao-Wi.
- É, vampiros! A gente já viu um logo que chegamos. Não quero enfrentá-los. São muito fortes e cheios de truques. Suspeito que eles é que criam esses zumbis, sabia?
- Vocês fugiram?
- É, não tem como enfrentar esses monstros! É sério o negócio, Jasmim!
- Wi, eu disse que a gente dava conta. Você não quis saber! Agora tenho que ver essa moça rindo da gente.
- Até parece... Não lhe dê ouvidos, Jasmim. Eu sou a parte pensante da dupla. Não fosse por mim, já...
- Sangue? - Jasmim percebe um pouco de sangue saindo do nariz de Kao-Wi enquanto conversam. Ele tira um lenço e o coloca na região para conter o sangue.
- Normal. Acontece quando uso meu poder. Agora vamos. Uma escola nos espera.
E seguem os três apressadamente pelo caminho do meio.
Vozes mais à frente nesta mesma estrada. Kao-Wi, Aeze-Yo e Jasmim seguem pela rua em direção a essas vozes. Não apenas por conta das vozes, mas por ser este o caminho que eles já vinham seguindo.
As vozes parecem discutir. Homens e mulheres, aparentemente poucos. Um grito. As pernas de Jasmim e dos dois irmãos chineses saltam e saltam. Os três correm para descobrir o que houve.
Chegando na esquina, eles podem ver mais ou menos o que aconteceu. Jasmim vê com precisão a cena em tons azuis, graças ao novo poder da morningstar.
Duas mulheres e um homem estão no meio da rua. Uma das duas está de pé e trêmula observa, com os dois que estão sentados, a aproximação de zumbis.
Disparos. É Kao-Wi que, agachado com as pernas montando uma base firme para o corpo, atira nos zumbis com dois revólveres de cano longo.
Jasmim vê alguns dos zumbis e libera a maça voadora. A arma deixa sua mão e parte contra os zumbis, enquanto sua dona permanece junto dos irmãos chineses.
Zumbis são golpeados pela arma de Jasmim. "Então da última vez que utilizei, esta maça provavelmente não funcionou porque eu não via quem estava me atacando."
- Por favor! Ajude nosso pai!
- Não se preocupe! Vocês estão seguros agora! - Aeze-Yo, o mais novo dos dois irmãos chineses, se aproxima daquele grupo que acabou de ser salvo dos zumbis.
Numa troca rápida de olhares, Kao-Wi e Jasmim parecem compartilhar da mesma preocupação com o tempo e com o foco da tal missão.
- Yo, não estamos aqui à toa, esqueceu?
- Claro, Wi. Mas não podemos deixar...
- Vamos fazer assim. Vocês moram ali, não é? Voltem pra casa e se tranquem. Estamos em missão e na volta nós levamos vocês, tudo bem?
- Por Alá, voltem! Não deixem a gente aqui! Não tenho muito a oferecer, mas eu te dou as minhas duas filhas, que são tudo o que tenho.
- Como é que é?!
- Calma, Jasmim. - Kao-Wi então se vira para o homem. - Senhor, fique sossegado que voltaremos sim. Não para receber esse pagamento, mas voltaremos. Vão para dentro agora.
- É sim! Pode apostar! - Aeze-Yo complementa. - Suas filhas são muito bonitas, mas não é assim que nós agimos. Nós vamos voltar porque vocês precisam, porque é a coisa certa a fazer. A gente volta sim.
Por outras ruas, caminham Jasmim e os irmão chineses, passado algum tempo.
- Por isso que gosto desse trabalho! A gente ajuda os outros. - Aeze-Yo caminha alegre e distraído. Seu irmão e Jasmim, pelo contrário, seguem juntos mas atentos a qualquer movimento ao redor. - Ei, Wi! A gente encontra eles mesmo na volta, né?
- Você gravou o caminho? Estou contando com você pra isso.
- Claro, mas... São tantas ruas... E o que deu naquele homem, hein? Querer pagar com as filhas?! Se bem que nem tem muito com o que pagar, né? Se a gente quisesse podia pegar essas coisas desse monte de gente que morreu sem problemas, né? Só tinha mesmo as filhas pra oferecer. Sabe que elas são até gostosinhas? Devem ser da minha idade e... Arghh!
Ele se abaixa com as mãos na barriga. Foi um soco de Jasmim, que continua andando séria enquanto Kao-Wi se aproxima do irmão para ajudá-lo.
- Vai ficar quieto e se concentrar na missão agora?
- Você nem me defende, né Wi?
- Não acho legal a gente ficar aqui um espancando o outro, mas você não tem juízo, fazer o quê... Bem feito. Deixa de falar besteira e vamos ficar todos atentos pra não sermos pegos de surpresa.
- Tá... Ai... Olha, Jasmim... Desculpa se te ofendi. Você é linda, sabia? Devia ser modelo!
Os três seguem. Jasmim, indiferente.
- É sério! Devia sim! Alguém já disse isso? Porque você bem que...
- Pra quê? - fala Jasmim finalmente. - Pra um ou outro babaca ficar se gabando: "Olha, ela só é modelo porque eu sugeri. Eu tenho bom gosto com mulheres!"
- Não é assim... É que você é mesmo bonita.
- Não sou fútil. Vá ser modelo você, já que quer tanto.
- Ah, obrigado. Sabe que até já pensei nisso? Conheci o dono...
Jasmim olha pra cima num suspiro de quem diz "desisto". Kao-Wi apenas acompanha, com um sorriso leve e estranho no rosto. Aos poucos o sorriso vai se desmanchando. Precisamente à medida em que vão se tornando mais nítidos os gemidos e passos que não devem estar longe.
Enfim, num terreno com muro baixo, finalmente lê o nome de uma escola. Exatamente a escola que procuravam.
Morte é tudo o que existe. O cheiro da morte. Corpos apodrecendo por toda a escola. Alguns deles ainda se movendo e atacando.
São lembranças recentes da escola. Mãos geladas. Uma segurara a mão onde Jasmim leva a morningstar. A outra, em seu pescoço. Logo Jasmim estava ali, a quinze metros do solo, sendo enforcada por outra figura feminina contra a parede já no ponto mais alto do prédio.
- Vocês são ousados demais. O que diabos vieram fazer aqui? Ou melhor, você é ousada. Aqueles dois lá não parecem grande coisa.
A mão ainda segura a morningstar, mesmo presa contra a parede. Olhos amarelados e hálito carregado, de carne e sangue. Ela sorri friamente encarando Jasmim que, mesmo sendo alvo de tanta dor, não desvia os olhos nem muda a expressão.
Dois disparos. Um deles atinge as costas da estranha, que mostra as presas caninas e solta Jasmim, mergulhando no pátio em busca de quem disparou.
- Que droga! Sabia que ia dar errado! - Aeze-Yo toca no dardo já posicionado em sua besta. Sorri.
Os dois estão protegidos por um balcão feito na própria parede, enquanto mortos-vivos se aproximam pouco a pouco. Há muitos corpos espalhados, derrubados por Jasmim quando ainda estava no chão.
Enquanto Aeze-Yo posiciona sua besta, Kao-Wi troca o rifle pelos dois revólveres de cano longo, que estavam já sobre o balcão.
Um tiro acerta o ombro, outro se perde. O dardo acerta o abdômen. Num ruído, a vampira arranha o balcão caindo do lado onde estavam os irmãos Ceix pouco depois de eles saltarem fora da proteção, cada um para um lado.
Jasmim desce suavemente usando o poder da armadura. De lá, pode ver bem a cena. De um lado, Aeze-Yo dispara seu revólver contra zumbis que estão prestes a encurralá-lo. Do outro, Kao-Wi já deixou os revólveres e saca duas armas brancas como pequenas foices sem curva. Mais zumbis estão vindo e devem chegar em dois minutos.
Jasmim saca a maça voadora e a lança contra os zumbis que encurralam Aeze-Yo. Segura com firmeza a morningstar enquanto espera seus pés finalmente tocarem o chão.
Ao chegar ao chão, Jasmim corre contra a vampira. No mesmo instante em que Kao-Wi vai ao chão ferido.
- Ainda está aqui?! - A vampira encara Jasmim com olhos furiosos. Sua roupa suja manchada por sangue escuro.
A garra com unhas negras e afiadas vem em direção a Jasmim, mas é aparada pela morningstar. Mais um golpe, e uma resposta. Na troca de golpes, Jasmim a atinge também.
- Sua vadia! Você é forte! Eu ia te dar vida eterna se você ficasse quieta. Mas você prefere se opor a mim, então vai sofrer as consequências.
Mais troca de golpes.
Aeze-Yo, do outro lado da arena, finalmente consegue fugir do cerco com a cobertura da maça de Jasmim. Corre em direção ao irmão caído.
- Wi!!!
Ele se abaixa próximo do irmão. Coloca a mão em seu coração e sorri: está apenas inconsciente. Arrasta-o para o balcão de antes. O balcão provavelmente feito para atendimento de cantina ou secretaria da escola. Não importa. Aeze-Yo volta e recupera as armas do Kao-Wi antes que mais zumbis cheguem àquele lugar.
Garras e aço trocam golpes. É Jasmim e a vampira ainda. A armadura cinza com penas azuis mostra vermelho pouco abaixo do seio esquerdo. A vampira também foi atingida algumas vezes. Elas continuam lutando.
Um giro rápido da morningstar. A vampira salta para trás em esquiva. Então salta descendo as garras contra Jasmim.
As mãos da vampira fecham, segurando a morningstar, que estava em posição de aparar.
- Vadia! Cansei de você!
Um movimento estranho e Jasmim se vê de novo no ar. Dessa vez arremessada com força, para cima. Num comando mental, aciona a armadura. Ela não reage. Passa por cima do prédio. "Quanta força..." Não quer pensar na ferida, apenas no chão. Passa o prédio e começa a cair, do lado de fora. A armadura simplesmente não quer levitar...
Jasmim flutua até o chão. Não foi a armadura, veio nos braços de alguém. Durante o percurso, milhões de coisas passam na cabeça de Jasmim. Desde o julgamento se seria um inimigo até dúvidas mais específicas. O que estaria fazendo ali? Como voa? Em roupas pretas, ele chega ao chão trazendo a brava heroína. E o pensamento de Jasmim já cansou de pensar a seu respeito. No instante em que põe os pés no chão, apenas troca um olhar com aquele homem de cabelos e olhos pretos. Um misto de agradecimento e de sondagem, como quem lê as intenções do outro, o que o outro pretende fazer exatamente agora. Assim, tão logo coloca os pés no chão, Jasmim corre novamente para dentro da escola.
Aeze-Yo se levanta no fundo daquela sala do balcão. Metade dos seus ossos dói e a vista ainda procura um foco.
- Wi!!!
- Calma, rapaz. Você vai se juntar a ele logo, logo.
Aeze-Yo vê o irmão erguido pelo pescoço de uma das mãos da vampira, que o observa lentamente.
- Vocês são diferentes...
Barulhos de golpes interrompem a conversa. Aeze-Yo, ainda tonto mas já de pé, pode ver, tão surpreso quanto a vampira, Jasmim abrindo caminho entre os zumbis do outro lado do pátio.
- Vadia maldita! Por que não morre logo?! - a vampira joga o corpo inerte de Kao-Wi para o lado e caminha em direção a Jasmim. - Se queda não funciona, venha aqui pra eu arrancar sua cabeça fora!
O caminho se abre após a queda dos dois últimos zumbis e as duas ficam frente a frente de novo.
Aeze-Yo chega no balcão, mas nem tem mais forças para pulá-lo, então se debruça sobre ele e se deita para poder se levantar já do outro lado. Ali no balcão estão os revólveres de cano longo e as pequenas foices de Kao-Wi.
A imagem se forma aos poucos. A cabeça dói. Zumbis se aproximam. Por instinto, Kao-Wi saca um revólver estilo detetive de dentro do seu traje e dispara nos mortos andantes.
Ergue-se e se sente um pouco tonto. Sangue corre de sua cabeça pelo lado esquerdo.
Com olhos hostis e garras armadas, a vampira corre contra uma Jasmim séria e de morte nos olhos. Ela espera o momento certo e, quando a vampira está perto o suficiente, gira a morningstar de baixo para cima. A vampira ainda tenta colocar os braços na frente, mas é lançada para o alto, caindo atrás de Jasmim e deslizando ruidosamente no chão, como quem tenta parar de deslizar usando as garras.
- Sua mortal... Sua... O que é você!? Agrrrrr...
Ela se contorce de raiva, ali sozinha, enquanto um sorriso quase imperceptível brota no rosto de Jasmim. Lembranças de uma luta contra mulheres-planta de não muito tempo atrás.
A vampira olha com atenção Jasmim de pé diante dela. Kao-Wi e Aeze-Yo abraçados ao fundo, sem que se possa saber quem está apoiando quem. Os dois estão muito feridos. De repente, uma gargalhada da vampira, já de pé.
- Vadia, você é boa mesmo! Só tem um problema. Eu não morro, você sim. Você é mortal e isso me basta. Ainda te pego desprevenida, você vai ver. Ha ha ha ha ha!
E se vira e rapidamente parte para a saída. Para de repente.
Um vulto está ali parado, impedindo a passagem. Um homem de preto, que ergue a bainha e a tira da espada.
- Você?!
Num movimento rápido, a cabeça da vampira rola no chão e ele para a dez passos de Jasmim, com a espada estendida pelo final do movimento que acabou de executar.
Neste instante Jasmim sente o ferimento, mas faz de tudo para não demonstrar. E para não demonstrar também o frio que percorreu sua espinha ao vê-lo cortar o pescoço da vampira com tanta facilidade. Flashbacks de ferrolhos cortados passam em sua mente. "Será que é ele?" Todas as fraquezas do momento e seus medos Jasmim guarda com cuidado sob seu rosto frio. E encara de modo quase hostil aquele que a salvou há pouco e que acaba de matar a vampira, mas que bem pode ser também seu rival.
Lentamente a espada é recolocada na bainha. Os dois se olham por um longo momento, a uma distância aparentemente segura um do outro. De um lado, Jasmim com sua armadura de malha cinza com penas azuis, com a morningstar na mão e ar altivo. Do outro, aquele estranho de cabelo longo, liso e preto. Vestido de preto, de bota e sobretudo, com olhar sério e curioso. Encaram-se frente a frente, olhos azuis e olhos negros.
Ao fundo, Kao-Wi e Aeze-Yo tentam tratar um do outro, fazendo estancar o sangramento.
- O que fazem aqui? - O estranho finalmente pergunta.
- Estamos em missão de resgate. Bens de estimação.
- Bens... Não me parece sensato. Aqui não é seguro.
- Sabemos dos riscos.
- Ao que parece, não de forma precisa. Vão embora enquanto é tempo. Eu acompanho vocês até a saída.
- E quem é você?
- Sou Azawagh. Vamos logo. Seria uma pena vocês virem de tão longe para morrerem aqui.
- Como?
- Eles são chineses, não são? Você parece ser europeia, sueca talvez.
- Russa. Você é daqui?
- Sim.
"Será?"
- Espere! E quanto ao que vimos buscar? - É Kao-Wi que pergunta, mal podendo ficar de pé.
- Vocês têm dez minutos. - Azawagh fala, antes de se virar e sair calmamente da escola.
- Yo, procure aí! Jasmim, se puder ajudar também...
- Tá, Wi, mas o que viemos buscar mesmo?
- Deixa ver... Procurem a diretoria. Tem dois quadros lá e o que tiver de pote na estante tragam também.
- Que tipo de missão é essa! Que coisa idiota! Pô, Wi, esse perigo todo que enfrentamos foi só por uns potes e dois quadros?
- Vão lá que estamos perdendo tempo.
- Parece que dessa vez você terminou pior que eu né, mano?
Kao-Wi e Aeze-Yo caminham pela rua, este apoiando aquele. Jasmim e Azawagh vão à frente, como batedores atentos e armados. Atentos à cidade e um ao outro.
- Wi, diz uma coisa... Esses quadros...
- São relíquia de família, Yo. Têm muito valor para quem nos contratou.
- Entendo. E os potes? Jasmim achou um monte e você escolheu só três!
- São os ancestrais dele. São cinzas deles. Percebe o quanto isso é importante?
- Mortos? Sei... Espero que a recompensa valha mesmo a pena. A gente quase que morre nessa brincadeira afinal de contas.
- A recompensa é o valor justo.
- Tá... Sabe o que não entendo? Por que a gente não pega simplesmente dinheiro, ouro e coisas por aí? A cidade está morta mesmo! Não tem dono mais...
- Já ouviu dizer que o que vem fácil vai fácil, Yo?
- Já, mas...
- Tenha calma. Vamos construir nosso futuro aos poucos, um passo de cada vez. Vamos ter uma bela riqueza um dia, mas seremos almas ricas também se continuarmos nesse caminho.
- Tá...
Viram a esquina e prosseguem.
- ...Mas preferia ser uma alma pobre com dinheiro e ficar me arriscando aí só para ajudar as pessoas, não por recompensa. Sei lá, estranho isso tudo! No final das contas talvez terminasse é dando no mesmo.
- Talvez.
- Sabe o que é engraçado? Você com tantas armas terminou mais machucado que eu! Também, pra quê tanta, né? Ah, esse caminho é por onde a gente veio! Vamos pegar aquele pessoal como a gente prometeu, né?
- Tudo bem.
- Nossa! Vocês dois aí na frente não falam nada!
- Muitas palavras não indicam necessariamente muita sabedoria. - Azawagh responde - Tales de Mileto.
- Tá, mas ficar calado também não significa isso. Não significa é nada!
Os quatro continuam pela noite fria...
A despeito do corte em sua armadura, Jasmim segue em estado de alerta completo. Caminha ao lado de Azawagh e à frente dos irmãos Ceix.
Sem desviar a atenção de Azawagh, os olhos de Jasmim procuram sinais de fogos na cidade. Enquanto vigia todas as direções para procurar fumaça ao longe ou cinzas por perto. Nunca vira seu rival, mas sabe que ele usa uma arma afiada e gosta de queimar as coisas. Azawagh já bate com uma das características, eis porque a preocupação.
Poderia perguntar sobre a Rússia, sobre o que ele faz nesta cidade em ruínas ou qualquer outra coisa, mas se for ele seu rival, com certeza mentirá e esperará que ela baixe a guarda.
- Como se chamam? - Azawagh pergunta de repente.
- Quem? - Jasmim o encara, em reação rápida.
- Não me disseram seus nomes.
- Ah, é verdade! Que gafe a nossa, né Jasmim? Eu sou Ceix Aeze-Yo e ele é Ceix Kao-Wi, somos irmãos. Sei que não parece, eu sou bem mais bonito que ele, mas fazer o quê. E ela ali é a Jasmim.
- Jasmim... Bonito nome. Combina com você. Tenho certeza de que você não é delicada como uma jasmim, mas tem uma beleza suave nos tons claros da sua pele, seu cabelo, seus olhos...
Um movimento rápido. A mão esquerda de Jasmim segura a mão direita de Azawagh, impedindo-a de tocar seu rosto como Azawagh pretendia, para acariciá-la. Os dois se encaram parados. Nenhum movimento mais, mas as outras mãos de ambos já estavam em suas respectivas armas.
- Com licença... Vocês dois não vão brigar agora, não é? Já, já vamos embora de vez. Não tem pra quê ter briga. - Kao-Wi se esforça para restaurar a paz.
- Desculpe-me, Jasmim. - Azawagh puxa a mão de volta e recomeça a caminhar. - Realmente gostei do seu nome e acho que combina com você. Se não posso tocar seu rosto por você ser comprometida, a religião não permitir ou por você ter aversão a mim, minhas sinceras desculpas.
Jasmim apenas o olha inexpressiva, com o canto dos olhos. Aversão... Não é bem a palavra... É certo que se sentiu atraída por ele de alguma forma. Mais certo ainda é que não vai querer nada com ninguém enquanto há trabalho pela frente que possa ser prejudicado por qualquer romance infantil. Menos ainda com alguém alvo de tantas suspeitas de sua parte. Seria imprudência demais para ela.
- Dói muito? - Ele aponta calmamente para o corte que Jasmim recebera da vampira ainda há pouco. - Tem que tratar disso logo.
- Não preciso.
- Precisar, precisa sim. Se não quer, tudo bem. Mas vai acabar piorando.
- Quando encontrarmos os sobreviventes paramos um pouco para cuidados assim.
- Pois não, capitã.
Jasmim sorri levemente das claras tentativas de aproximação do estranho espadachim de manter um clima mais leve. Provavelmente conseguiria em outras ocasiões, mas não agora.
- Parece que estão começando a se entender...
- Wi, sei não... Espera mais uns minutos pra eu dizer o que acho a respeito. Ainda não sei dizer. Sabe de uma coisa?
- O quê?
- Tou achando que levo trambolho demais. Essa besta mesmo...
- Ué, combina com você.
- Sério? Por quê?
- Deixa pra lá.
- Não sei, talvez eu deva usar meu poder em facas e ser um atirador de facas, o que acha?
- Talvez seja bom como uma opção a mais.
- Está louco? Já estou querendo me livrar dessa tralha!
- Uma arma não substitui a outra. Faca é mais difícil e o alcance é limitado.
- Sei... Mas mesmo assim!
- Por que eu ando com tanta arma? Já parou pra pensar?
- Porque gosta de ser burro de carga! Por que mais?
- Cada arma que levo tem uma razão e não pode ser substituída por outra dentre elas.
- Tá, então me diz: pra que três revólveres?
- Dois de cano longo. Difíceis de manusear, mas eu sei usá-los ao mesmo tempo. O outro é compacto, para emergências.
- Tá, mas ei! A rua é essa! E a casa é aquela lá!
- Vamos então. - Jasmim fala, conduzindo o grupo lado a lado com Azawagh. E de armas a postos.
- Pensei que não viriam... Quando saímos daqui?
- Calma, daqui a pouco... - Kao-Wi responde, deitado no tapete ao lado do irmão. No fundo suas forças vão mal.
No quarto das filhas, Jasmim está sentada na cama simples, sem a armadura, tentando fixar uma tira de lençol em seu corpo, sob o seio esquerdo, como uma forma de tratamento emergencial para o ferimento. Cansada está, mas há um caminho pela frente até que tenham mais um pouco de paz. Seus olhos não deixam um segundo de vigiar a cortina que serve de porta e a morningstar permanece na cama, bem próximo da sua mão.
Ao chegar na sala, Jasmim vê os irmãos Ceix deitados, parecem dormir. Os três moradores permanecem sentados num canto, no sofá, os três olhando para ela ansiosos.
- Onde está o outro?
- O outro que veio com vocês? Disse que ia ver o que está havendo aí fora, que voltava logo.
- Só faltava essa... - "Os dois dormem como se eu não estivesse cansada e ferida também e o Azawagh ainda resolve sair..."
Ela caminha em direção à porta da rua. Os moradores parecem querer falar qualquer coisa. Curiosidades sobre uma guerreira tão vistosa, desculpas pra impedir que ela saísse, não se sabe. Seus olhos dizem que queriam falar alguma coisa, mas eles não se atrevem. E Jasmim já abriu a porta.
Azawagh salta de qualquer lugar para perto de Jasmim.
- Eles estão vindo.
- Quem?
- Vêm vingar a morte da criatura.
- Quantos são?
- Não sei, mas saberemos logo.
Os olhos de Jasmim se ajustam para verem a rua e tudo o mais em tons de azul. As mãos seguram firmes a morningstar. Seus olhos permanecem tão atentos a Azawagh quanto a qualquer outra coisa que possa representar perigo. E é assim que ela vigia a rua à espera do que quer que esteja vindo.
Já Azawagh se prepara a seu modo, indo para o meio da rua. Seu olhar passa pela casa antes de encontrar Jasmim, logo se voltam para a rua propriamente. Jasmim entendeu: ele iria perguntar sobre os aliados dela, mas desistiu da ideia ao se dar conta da resposta óbvia. Eles não podem ajudar agora do jeito que estão. São apenas os dois mesmo.
Três vultos se aproximam. Duas mulheres e um homem. Logo estão eles bem à frente, a vinte metros. O homem faz apenas um sinal afirmativo lento com a cabeça. Azawagh olha Jasmim e parte como um raio, deixando aquele olhar prepotente de "deixa que eu cuido disso".
Jasmim não tem tempo para ter raiva do gesto. Tão logo aquele homem que vinha aponta para a casa, ela corre para interceptar a mulher que atenderia à ordem de matar os moradores, o que no momento incluiria os irmãos Ceix.
Qual um cometa, a morningstar gira furiosa, mas a outra consegue se esquivar e arranhar a armadura de Jasmim na altura da coxa. Elas param e se encaram. É mais uma vampira.
Um golpe repentino, mas o bastão da morningstar bloqueia as garras da nova vampira. E num giro a acerta no braço.
Do outro lado, Jasmim apenas sente a confusão do combate dos outros três. O outro também tem uma espada e Azawagh luta contra ele e a outra vampira.
O ar deixa os pulmões de Jasmim dolorosamente. O chute da vampira também a impulsiona e ela cai costas na calçada. Jasmim solta a maça de guerra voadora, mas esta cai no chão. Que outra escolha? Levanta-se e corre, enfrentando a dor que sente, para impedir que a vampira alcance a casa.
Por sorte, consegue acompanhá-la e golpear suas pernas. A vampira cai e logo se levanta. Estão as duas diante da casa agora.
Um salto da vampira. Jasmim rapidamente gira o corpo, recebendo a vampira com a bola de aço de sua morningstar.
A atacante vai ao chão com as mãos na barriga. Logo suas garras acertam o braço de Jasmim, que gira mais uma vez a morningstar. Ao fundo, o barulho metálico de duas espadas ágeis ainda é claro e presente. E os cinco lutadores continuam de pé.
Foi tudo muito rápido entre os dois espadachins. Mais golpes do que olhos podem ver. Sangue saltando de ombros, tórax, pernas, denunciando regiões recém-atingidas. A vampira timidamente ataca Azawagh algumas vezes sem surtir muito efeito. Pelo menos não muito efeito direto. O outro sabe aproveitar essas distrações.
Mas tudo é muito lento para os dois, como a adrenalina molda o tempo a seu prazer. Os movimentos que outros olhos não veriam são claros para os que lutam, que se comunicam numa linguagem de expressões faciais. Como jogadores de tênis, conseguem prever se são atingidos ou não desde o início do movimento do oponente. E nesta disputa intensa, Azawagh não pode se dar ao luxo de ver como Jasmim está se saindo contra a outra vampira, por mais que se lembre que ela está ferida, por mais que queira. A vampira que está aqui já representa uma distração suficientemente perigosa. Desviar o olhar do seu oponente por um milésimo de segundo pode ser fatal.
Mas mesmo ela sendo tão fraca, ela dá uma séria vantagem para o seu rival. A vampira distrai. Precisa eliminar esta vantagem. A simples determinação em seu rosto denuncia sua intenção e dá novo rumo ao combate. Seu rival fica mais agressivo para evitar dar oportunidade de cumprir sua nova meta no combate.
Apesar da desigualdade do combate, todos já estão bastante feridos. A espada corta parte do cabelo e desliza pelo braço da vampira. E continua seu movimento até aparar a espada do outro, que vinha sedenta em direção às pernas de Azawagh.
Mais alguns golpes são trocados e a um comando rápido a vampira corre para longe.
- Jasmim! - Azawagh grita sem desviar o olhar de seu oponente, apenas para chamar a atenção para o perigo que ela corre.
Jasmim olha com raiva a vampira que enfrenta. Seus dentes apertados e seus olhos azuis encarando a agressora.
O grito de Azawagh alerta para o perigo. E o perigo era a segunda vampira, que salta por sobre a primeira atacando Jasmim de surpresa. Ao menos esta era a intenção.
Num giro rápido e preciso, a intrusa é arremessada para o lado, na calçada, e Jasmim se volta para a vampira com quem já lutava. O corpo da outra permanece onde caiu, banhando a calçada com o sangue que corre de onde até pouco tempo atrás era seu tórax. O golpe de Jasmim a acertara em cheio.
- Devo admitir que você é forte. Muito forte para uma mera mortal. - A vampira segura o ombro machucado. Há uma ferida nada boa em sua barriga e de sua perna direita corre um fio escuro de sangue.
Do outro lado Jasmim a encara, agora serena e preparada, apesar das novas feridas que vieram desta batalha.
Passo a passo, lentamente a vampira se desloca e sobe na calçada a duas casas da casa protegida. Dali ambas veem a luta que ocorre mais adiante. Os dois estão igualmente feridos, mas continuam o combate. Agora, absolutamente empatados e ainda sem espaço para nem ao menos olharem de lado.
- É, mortal... Foi muito bom lutar com você. Você é sem dúvida uma oponente à altura. Não sei o que ele quer de você. Só te digo para ter cuidado com o que está se metendo. Você é uma boa oponente, que nunca imaginei encontrar entre os vivos. Mas esta luta acabou.
Jasmim recua a perna esquerda, formando uma base sólida no chão, enquanto sustenta a morningstar na horizontal, preparada para aplicar o contragolpe em resposta ao último ataque da tal vampira.
Um leve movimento de sobrancelhas, é a surpresa ao ver o que a vampira planejava fazer.
Com as pernas sangrando, mal sustentando o próprio peso, ela corre. Suas garras e presas se armam e ela salta contra seu alvo, que não era Jasmim.
Rápido como o vento, algo passa no meio da vampira. Era a espada de Azawagh que recebia num golpe decisivo quem saltava em ataque tão imprudente. Ela cai e rola até ficar de costas no chão. Em seus últimos momentos, gira a cabeça para ver Azawagh sozinho. E sorri. Sabe que vai morrer, mas se alegra ao saber que seu mestre soube fazer com que sua morte não fosse em vão.
A sensação de alívio e segurança não vem tão completa e Jasmim observa o estranho espadachim ir embora. Um braço cansado se apoia em seu ombro. Ela se vira para ver como está... Um beijo. Um beijo suave e Azawagh olha em seus olhos surpresos.
- Jasmim é uma flor mágica. Dizem que quem faz um desejo de amor sentindo o aroma de jasmim sempre será atendido.
Envolvendo seu corpo com firmeza e carinho, mais um beijo. Um beijo mais intenso, ardente. Os dois bastante feridos e Jasmim ainda surpresa fecha os olhos e também abraça Azawagh.
A porta se abre e Jasmim entra na casa onde estão pai e filhas de pé impacientes. No canto da sala os irmãos Ceix dormem.
- Ai! Que é que há!? - Aeze-Yo acaba de receber um chute de Jasmim.
- Vamos logo.
Não demora e logo vão os quatro pelo caminho de volta, conduzindo os três sobreviventes que encontraram. Os três ajudando Aeze-Yo e Kao-Wi. Jasmim e Azawagh vão à frente, expondo-se ao que quer que possa aparecer.
- Ai, Wi, acho que não vou aguentar... Nunca levei uma surra dessas...
- Yo, deixa de frescura. A gente já está indo embora. Além o mais, todo mundo está ferido. Já viu os dois? Jasmim? O que houve? Vocês não estavam tão machucados antes...
- Não importa. Está tudo sob controle. Vamos embora daqui.
- É, Wi, acho que a gente perdeu alguma coisa.
- Vocês estavam dormindo.
- Bem lembrado, menina. Seria ótimo dormir mais. Pelo menos uns cinco dias. A propósito, qual o seu nome, minha linda?
- Leyla.
- Prazer, Kao-Wi. Não precisa se preocupar. Não tratamos vocês como moeda. Não vamos aceitar vocês como pagamento como seu pai propôs. Se depender de nós, vocês serão livres para fazerem o que quiserem da vida.
- É isso aí! Leyla é um nome bonito, hein! E sua irmã?
- Se chama Ayse. Não é de falar muito.
- Como é que é? Ayse?!
- Sim.
- Mas é meu nome!
- Seu nome não é Yo?
- Não, é Aeze-Yo. Que droga! É por isso que aquele povo na rodoviária ficou rindo de mim! Esse nome por aqui é nome de mulher. Que droga!
- É, Yo! Vivendo e aprendendo... Meu irmão é uma menina e eu nem sabia...
- Ah, cala a boca! Vamos embora daqui. Não quero saber mais dessa porcaria de país!
Na frente, Jasmim repassa sua história. Incidentes, deduções e suspeitas. Por que a vida não é mais simples? Do seu lado, Azawagh lhe sorri e ela não sabe como reagir. Não sabe o que sente exatamente e se concentra nas ruas por onde passam.
- Parece que eles fizeram as pazes.
- Será, Wi?
- Claro! Quem diria, hein irmão?
- O quê? Que eles...
- Não, nós... Esta cidade vai ficar na história. Não é todo dia que se conhece lutadores assim, e que se enfrenta uma vampira e sai vivo. Tudo bem que estamos um bagaço, mas...
- Vocês enfrentaram uma vampira? - Leyla pergunta surpresa.
- Claro, menina! - É Aeze-Yo quem responde. - E demos cabo dela, é claro! Somos uma ótima equipe! Por isso nem se preocupe que conosco vocês estão seguros. E eu não vou deixar nada acontecer com você.
Kao-Wi e Jasmim armam o mesmo sorriso irônico. Kao-Wi ao ver o exibicionismo do irmão mais uma vez em ação. Jasmim ao perceber como se orgulham da vitória contra a vampira, com a qual contribuíram bem pouco. E pensa no quanto deveria estar orgulhosa por ter encarado até mesmo duas vampiras ao mesmo tempo. Sorri e vê Azawagh ao seu lado. Sim, formam uma boa equipe. E ela começa a se dar conta de que, independente das suspeitas que formulou, está gostando dele.
- O que você faz aqui?
- Nada muito importante. Para onde você está indo?
- Estou em uma missão.
- Imaginei. De que tipo?
- Quero que o mundo volte ao normal. Esta é minha missão.
Azawagh para por um instante. Então continua...
- Uma missão das grandes.
- E você?
- Eu sou daqui mesmo. Mas sabe? Já estou me cansando desta cidade. Se você concordar, posso te acompanhar.
- Quer vir comigo?
- Claro, se não se importar. Você já tem aliados, mas quero estar por perto para te proteger.
- Você acha que eu preciso de...
Azawagh segura a mão de Jasmim e olha no fundo dos seus olhos.
- E se precisar? Não quero que nada de ruim aconteça com você.
- Vocês são irmãos mesmo?
- Claro, Leyla, por quê?
- Não são namorados?
- Ô, ei!
- Filha, não abra mais a boca.
- Mas pai! Tá, desculpa!
- Cala a boca! Enquanto forem minhas filhas não permito que conversem assim.
- Ah, mas o que tem?
- O que tem?! Não quero que minhas filhas se percam. A mulher nasceu para servir o homem.
- Não é bem assim...
- Não é assim? São demônios que não são assim. E o mundo está cheio de demônios, por Alá! Que minhas filhas não estejam entre eles!
- Está bem! Então aceitamos as duas como pagamento!
- Wi!?
- Calma, Yo, sei o que estou fazendo. - E fala baixo para Leyla. - Isso é pra libertar vocês, não se preocupe.
- Mas eu gosto de você.
- Ai, já vi que isso vai ser complicado.
- Complicado por quê? Vocês são namorados?
- Mas que coisa! Que cisma é essa sua!?
- Eu ouvi que na China casais só podem ter um filho.
- Não é bem assim. Podem ter mais, mas tem um preço.
- Me fale mais!
- Ah, não quero falar sobre isso.
- Tudo bem, meu marido.
- É, isso vai ser complicado...
Os irmãos Ceix precisaram parar pra descansar. Azawagh aproveitou o momento e se afastou do grupo para resolver alguns últimos assuntos antes de definitivamente deixar a cidade para trás.
É por uma daquelas ruas desertas que Jasmim corre. A escuridão completa transformada em clareza em tons azuis sob seus olhos. Foi pouco depois de Azawagh sair que ela se deu conta de que ele deve ter ido em busca do espadachim das vampiras para enfrentá-lo sozinho.
Não parou para pensar na imprudência de deixar seus aliados sozinhos feridos como estão. No fundo sempre agiu sozinha mesmo. Então corre pelas ruas abandonadas seguindo o rastro de Azawagh.
O sangue quente lhe faz se sentir um tanto melhor. Não vê a hora de voltar para o antiquário após deixar o mundo como era antigamente. Com sequelas, o que é inevitável, mas pelo menos de volta ao normal.
Pensa em quantas vampiras o espadachim ainda pode ter e no risco de Azawagh. De um grito, vira a esquina e vê. São dois homens abaixados na calçada. Aproximando-se, Jasmim reconhece os olhos de Azawagh e em seu rosto, de sua boca, as presas vampíricas.
Não há espaço para pensamentos ou explicações, em sua cabeça apenas uma palavra: traidor.
Golpes sucessivos da morningstar acertam seu antigo aliado. Pouco a pouco, seu corpo perde a forma. Cabeça, braços... Sob um rosto frio e repleto de raiva, a decepção dói. De seus olhos, uma única lágrima cai, que ela promete secretamente para si mesma: será a última.
- E Azawagh?
- Ele não vem. Vamos embora.
Sem mais perguntas, todos caminham na tentativa de deixar de vez esta cidade morta. A curiosidade do grupo é intimidada pela expressão séria e decidida de Jasmim.
Com esforço, eles percorrem o caminho de volta, deixando o vazio daquela cidade e levando lembranças.
Novamente Pasinler. Plena madrugada e mal tarda o amanhecer.
Jasmim segue como única batedora do grupo. Séria e firme, como se não doessem todas as marcas da batalha tão recente. Logo atrás, os três resgatados e os irmãos chineses a seguem apenas por inércia. Pois se pararem por qualquer razão, não conseguirão mais continuar seu caminho.
As únicas palavras são da comunicação frequente entre Jasmim e Kao-Wi. Uma comunicação objetiva e restrita apenas às instruções de que ruas tomar para que cheguem ao seu destino. E de tanto caminharem, enfim se veem diante de uma mansão de muro vermelho por cimento chapiscado.
- É esta mesmo. - Kao-Wi fala, logo antes de se sentar encostado no muro, enquanto o pai das duas garotas deposita no chão os jarros e quadros que trazia enrolados.
Jasmim toca a campainha insistentemente.
- É, irmão, parece que acabou. - Aeze-Yo comenta, sentando-se também.
- Só pretendo dizer isso quando estiver inteiro de novo e com o pagamento na mão... - Responde, quase sem força. Leyla, abaixada ao seu lado, acaricia seus cabelos concentrada.
Jasmim continua insistindo na campainha.
- Quem é a uma hora dessas?!
- A missão foi cumprida. - Jasmim responde. - Suas preciosidades trouxemos da escola até aqui.
Jasmim se deita, finalmente vencida pelo cansaço. Num quarto com duas camas. Um quarto até pequeno, mas ainda que não houvesse cama alguma já seria confortável o bastante no momento. Sem fazer mais nada, ela adormece ali mesmo, ainda com a armadura suja... É agradável dormir limpa e tratada, mas não há tempo para isso, já forçara seu organismo demais, então adormece.
No quarto ao lado, são os irmãos Ceix que dormem como Jasmim, como pedras. Também estão do mesmo jeito que quando chegaram, diferindo apenas que agora dormem. O sono dos heróis, que quase morreram há tão pouco tempo, mas sobreviveram não apenas para contarem a história como também para cumprirem a missão.
Um pouco mais tarde, quando já é plena manhã, são forçados, um a um, a despertar e tomar banho para que recebam um tratamento médico mínimo. Tratamento médico e alimentar. Comem qualquer coisa e se rendem mais uma vez ao sono. Somente os três resgatados da cidade morta é que estão bem, e aproveitam para falar dos heróis, tudo o que sabem e o que não sabem.
Enquanto os heróis dormem, sua fama corre entre algumas pessoas importantes da cidade, parentes e amigos do contratador. E este organiza uma festa de recepção à altura. Claro que o que foi trazido não tem valor econômico o suficiente para justificar tais gestos, porém se ver mais uma vez diante daquilo que tanto nos era importante no passado e que tínhamos como perdido para sempre realmente muda a forma de ver as coisas.
Os três dormem em dois quartos, sem saber que ao acordarem terão uma festa.
Uma estranha movimentação. Barulho de gente e Jasmim desperta para mergulhar nesse caos. Na cama ao lado, um vestido rosa escuro. Franze a testa e se levanta. Vai ao banheiro lavar o rosto e volta para se vestir.
O barulho não muito distante a deixa inquieta. "Quanta gente há aqui? Precisa isso tudo?"
Sai do quarto e se depara com dois turcos que seguiam pelo corredor em direção à sala.
- Ora, a senhorita já se levantou? - O que é aparentemente mais velho inicia o diálogo. - Sou Joseph Kemal, sou o dono desta casa e quem pagou aos irmãos por esta missão. Este é...
- Mustafa Ceylan, prazer. Eu fui quem contratou os irmãos. Perdi quase tudo o que eu tinha e graças apenas à generosidade de meu grande amigo Joseph é que tenho onde dormir e o que comer. E agora, meu querido pai e minha família junto a mim. Sem falar nos quadros que têm sido da família por gerações. Pena que precisaram ser cortados das molduras para facilitar o transporte, mas apenas por ter tudo isso de volta já me sindo bem melhor, bem mais vivo.
- Mustafa, meu amigo, você merece!
- Obrigado! Temos que agradecer muito aos irmãos Ceix pelo ótimo trabalho realizado!
- Faremos isso tão logo despertem.
- E a senhorita? Acompanhe-nos até a sala! Hoje é um dia feliz de comemorações!
Ainda sem pronunciar uma palavra que seja, Jasmim os segue. Na sala um ar antigo e quente. Algumas poucas pessoas espalhadas conversam sobre tudo. Da janela, Jasmim vê o lado de fora, onde há mais pessoas conversando.
Devem ser nobres locais, amigos de Joseph e Mustafa. Seu corpo ainda dói e não podia ser diferente. E mesmo estando agora sem armadura, Jasmim ainda leva consigo a morningstar, sua arma tão especial.
Do outro lado da sala, vê Leyla acenar desconfiada. Difícil que fosse muito diferente disso, afinal Jasmim lhes parecera tão séria, mal humorada e, enfim, perigosa pelo tempo em que a conheceram...
- Aceita alguma coisa? - Vira-se e encontra um garçom com uma bandeja com doces e salgados. Retira alguns, afinal tem fome.
Mais uma olhada panorâmica na sala e percebe um vaso que parece valer muito. Aproxima-se para apreciá-lo. Há outros objetos enfeitando a sala, mas os outros não lhe chamam tanta atenção quanto este vaso em cerâmica pintada.
- Gosta deste tipo de arte, não é? - é Joseph quem se aproxima. - Tem bom gosto. Também tenho algumas belas obras espalhadas pela casa. Se quiser passear por aí para conhecê-las, fique à vontade.
Jasmim agradece com um gesto e se aproxima mais uma vez da janela, na intenção de saber se há mais gente ou menos gente do que havia ainda há pouco.
- Você viu aquela mulher que anda com eles? - Alguém conversa do lado de fora, perto da janela mas longe do alcance da visão.
- Claro! É muito bem feita!
- É, esses chineses são bons mesmo! Além de cumprirem missões e se aventurarem por aí ainda conseguem proteger uma mulher.
- E que mulher, né?
- É sim! Mas estão certos eles! Dois irmãos andando pelo mundo têm que ter uma mulher com que se distrair entre uma missão e outra.
- Ô! Homens de sorte!
- Não é sorte, meu caro! Eles sabem o que fazem! Agora ouvi dizer que ela ficou toda nervosa com uma das filhas de Devi...
- Gulosa ela, hein? Quer os dois só pra ela!
- Deve estar acostumada a pegar os dois ao mesmo tempo.
- Ai! - Aeze-Yo grita, ainda deitado. - Quando é que vai parar de me bater!?
- Agora. - Os dois irmãos se sentam ainda sonolentos. Veem Jasmim em sua armadura e com a morningstar nas mãos. - Só vim me despedir.
- Já? - Kao-Wi fala, esfregando os olhos. - Pensei que pudéssemos formar uma equipe...
- Eu luto só. Adeus.
- Tudo bem então. - Kao-Wi fala, enquanto Jasmim se afasta decidida pelo corredor. - Boa sorte em sua jornada!
Séria, com olhar hostil, Jasmim passa pelos convidados sem ser interrompida ou questionada. Simplesmente se dirige ao portão e vai embora. Ciente de que não pegou sua merecida parte no pagamento pela missão. Deixa a festa e a mansão para trás e apenas se vai às primeiras horas desta tarde...
É noite sem Lua. Uma luz. Uma luz estranha porém ilumina a praia onde Jasmim desperta.
- Jasmim!? Há quanto tempo!? Sentiu minha falta?
Ela se levanta ao ouvir a voz irritante de Klaitu. Apoiando a morningstar no chão, apenas espera para descobrir o que ele tem a dizer.
- É claro que sentiu minha falta, não é? Eu mesmo já estava com saudades de você. Você está bem, sabia? Dá pra notar como você amadureceu como guerreira por esses dias!
Jasmim continua com a mesma expressão séria de antes.
- É, vejo que muita coisa aconteceu! Agora me diz uma coisa, Jasmim. O que achou da praia de noite? Não ficou bonitinha? - A pausa de Klaitu não tem o efeito de fazer Jasmim falar ou mesmo mudar sua expressão. Então, ele prossegue. - Coloquei um pouco de luz no mar. Tá vendo as ondas fraquinhas? Dá nem pra perceber que a luz vem de lá, né? Vê as árvores também, como ficaram legais!
- Diga logo o que tem a dizer.
- Calma, Jasmim! Devia estar mais feliz depois das férias!
Jasmim suspira, tentando manter a calma.
- Se você não quer tratar do que importa, eu começo. Por que você não disse que a armadura podia deixar de funcionar!?
- Deixar de...? Não, Jasmim, não é assim, meu bem. É nisso que dá! Você é apressada demais e fica atrapalhando meu raciocínio o tempo todo! Olha, o que acontece é que esses brinquedinhos mágicos que você juntou são muito simples. Não chegam nem perto da sua arma principal. A armadura só pode ser usada para levitar três vezes ao dia.
- Por que não disse antes!? Eu quase morri por causa disso, sua voz sem corpo!
- Ei, Jasmim... Calma aí... Você está muito esquentada. A missão ainda está longe de terminar e...
- Sei.
- Bom, como eu ia te dizendo, a maça de guerra voadora também só pode ser usada três vezes ao dia. Eu não te disse isso antes?
Jasmim franze a testa com raiva.
- Eu devo ter dito em algum momento, porque...
- Não! Você não disse! Dá pra dizer o que tem pra dizer de uma vez por todas?!
- Calma, Jasmim! Eu gosto tanto de você! Fiz essa praia só pra você, sabia? Você tem que tratar bem quem gosta de você!
- ...
- Como eu te disse, essas armas são fraquinhas. Já a morningstar não, com ela você pode fazer muitas coisas e de um jeito bem diferente. Já pode enxergar no escuro que eu sei. E voar também.
- Voar? - Jasmim, surpresa, olha o cabo da morningstar e constata que há um novo símbolo. Uma ave em silhueta, com as asas erguidas.
- É sim. Voar. É diferente da armadura, pode voar à vontade. Não é legal voar? Eu acho! Não deixe de usar a armadura não porque ela ainda serve pra proteger seu corpo, né? Eu não gosto de ver você machucada. Você está bem agora mas vejo cicatrizes de algumas semanas, não é? Tenha cuidado pra não machucar seu corpinho.
- ...
- Mas é isso. Vamos continuar a missão para o mundo se endireitar. É o que você quer, é o que eu quero. Vamos logo pra tudo ficar bem.
- E o que você tinha pra dizer?
- Ah, se prepare que logo logo vai ter que viajar de novo.
- Era só isso!?
- Claro que não, Jasmim! Eu também queria te ver! Já estava com saudades, sabia?
- Idiota.
- Ah, não fala assim comigo, tá? Eu tenho nome! E é Klaitu. Mas tudo bem, pode ir agora. E quando acordar, pode colocar os anéis.
Um anel de cobre enfeita delicada mão. Dez pequenos cristais circulam um cristal maior, como um relógio. Este anel Jasmim já tem há um tempo, mas só alguns dias atrás é que passou a se mostrar em seu dedo. E hoje metade dos cristais está numa cor azul turquesa e não mais transparente como eram e como a outra metade está. Gradualmente eles foram mudando de cor desde que Jasmim colocou o anel no dedo.
Na outra mão, ela usa o outro anel. Mesclada de prata e cobre, a porção de cobre tem mudado de cor, como se estivesse se tornando de prata.
Um efeito Jasmim já tem notado a essa altura o dia parece ficar mais longo, pouco a pouco. A voz das outras pessoas começa a soar mais e mais arrastada e é preciso falar mais arrastado também ou as pessoas não entendem. Não é difícil deduzir que um dos anéis altera a forma como o tempo passa para Jasmim.
O Sol arde lá em cima. Embaixo, um rio azul num cenário verde perto de Tarso, ainda na Turquia. Das águas é Jasmim que emerge mais uma vez. Olha ao redor sem que se saiba se o que procura o faz com os olhos ou com o pensamento. Então mergulha novamente.
Mergulha com a morningstar e vai ao fundo do rio em pouco tempo. Procura entre as pedras, algas e seres que se movem por ali. Procura mais um pouco, então retorna à superfície.
É o que tem feito desde que amanheceu, sem muito sucesso. Ao menos sua morningstar lhe permite se destacar mais rápido através da água, ao menos isso.
O que procura é fruto de mais um sonho. Passou um bom tempo sem tê-los e agora eles voltaram. Desta vez procura um par de brincos. Discretos, de cristal, devem estar nesta parte do rio. O problema é onde exatamente eles estão.
O sonho desta vez ao menos mostrou para quê eles servem. Eles ficam dourados por uns instantes e permitem ver fluxos de energia mística, magia. Jasmim também sabe que funcionam somente uma vez por dia, e que estão em algum lugar por aqui. Resta saber onde.
Mais uma vez mergulha e passa entre os peixes. No fundo do rio já viu de tudo que é bicho estranho, nessas águas que nem parecem tanto assim de rio. Mas nada de brincos até o momento.
Mais uma vez na superfície, olha em volta. Um casal está se banhando na margem, devem ter chegado há bem pouco tempo. De longe, um brilho e um insight. Jasmim se aproxima dos dois flutuando. Os dois espantados com a estranha aproximação e ela nota que estava certa. "Klaitu, maldito!"
- Eu quero esses brincos.
São exatamente aqueles do sonho. A adolescente os usa.
Os dois totalmente sem ação diante de uma loira toda molhada que saiu da água flutuando e usando uma armadura e uma arma estranha, pouco a pouco conseguem agir. E a ação se resume a tirar os brincos rápido e entregá-los a ela na esperança que o pesadelo termine logo e ela vá longo embora.
Felizmente para os dois, é exatamente o que acontece. Tão logo Jasmim tem em mãos aquilo que veio buscar e pelo que procurou no fundo do rio por praticamente toda a manhã, ela deixa as águas calmas e caminha em direção à cidade.
Volta ao hotel para almoçar e dormir. Ainda é cedo da tarde, mas o tempo já corre bem diferente para ela...
- Olá, Jasmim! Como tem passado?
É a mesma voz inumana que ecoa pela praia. A voz de Klaitu e Jasmim está lá de pé, com seus objetos mágicos.
- Não responde mais, né? Tá, ligo não. Você deve ter notado sobre os anéis, não? Esse anel de pedrinhas acelera o tempo, ou você. Não sei, você fica mais rápida e pronto. Já o outro era dourado e de cobre, né? Agora está só dourado. É uma aliança matrimonial mágica. O que quer dizer que agora você é minha esposa para sempre.
Jasmim franze a testa um pouco, imóvel.
- Tá, Jasmim! Brincadeira! Esse anel na verdade é bem mais interessante que isso. É um anel do teleporte. Você pode desaparecer e aparecer em qualquer lugar que você tenha visto. Só que só pode usar este poder uma vez por semana.
A areia começa a revirar diante de Jasmim, a uns dez passos. Pouco a pouco uma porta se ergue até estar totalmente sobre a areia.
- Pode entrar. - Klaitu fala e Jasmim vai em direção à tal porta no meio do nada. Gira a maçaneta e puxa. A porta funciona como um portal. Ela atravessa.
Do outro lado, puro deserto. Umas árvores num lado e ruínas no outro. Ruínas de árvores e prédios.
- Entendeu porque te trouxe até aqui, né? - É a mesma voz sem corpo de Klaitu. - Você vai poder se teleportar pra cá! Grave bem o lugar pra não terminar se teleportando pro canto errado! Assim, mesmo que tenha visto um lugar só no sonho, se você realmente viu, você pode se teleportar pra ele, não é legal? Além do mais, sempre...
Jasmim abre os olhos no quarto de hotel. A televisão no canto, em cima de um birô. Ela se levanta e vai tomar banho. Logo está de volta para arrumar a bagagem e sair.
Antes da viagem, passa em um supermercado para comprar suprimentos mínimos, afinal viu para onde vai e não parece haver muitas opções de alimentação por lá...
Ela segue com suas bolsas e a morningstar, de que nunca se separa. Todos olham quando passa. Não é sempre que se vê uma loira por aqui, ainda mais armada e carregando bolsas, andando rápido como se não estivesse levando nada.
Finalmente, após várias ruas, encontra um lugar longe de olhos curiosos, de onde possa se teleportar em paz.
A morningstar vai ao chão, ainda segurada por Jasmim, e encontra a terra quente de um novo lugar.
- Klaitu...
Ela está no local certo, no mesmo do sonho. O problema é que estava numa região quente, porém que não se compara a esta. Ergue os olhos e vê o deserto incandescente. Pelo menos não é um deserto de dunas e tempestades de areia são uma coisa a menos com o que se preocupar.
A mão aperta firme a morningstar. Nela, a aliança continua dourada. Na outra, todos os cristais voltaram a ser transparentes.
É quando ouve um barulho estranho vindo das árvores que Jasmim se levanta. As árvores são ressecadas e de galhos finos e folhas pequenas. Daquelas árvores, ou de perto delas, vêm dois insetos gigantes. Dois escorpiões de uns quatro metros de cabeça a calda.
De morningstar em mãos, prestes a receber os insetos, de repente ela relaxa e sobe alguns metros do chão. Os insetos vêm e já não podem alcançá-la. Do alto, Jasmim pode ver um prédio esquisito e antigo no meio do nada.
São as botas de que Klaitu falou no sonho. Elas devem estar lá e não sabe Jasmim porque ela teve que se teleportar para fora do prédio onde elas estão ao invés de simplesmente aparecer lá junto com as botas.
"Sei que você deve estar se perguntando: como assim, botas mágicas? E se não for o meu número? Não precisa se preocupar. Essas botas mágicas se adaptam aos pés do dono. Só tenha muito cuidado porque agora estamos mais perto de conseguirmos o que queremos. E há quem não queira isso. Muito cuidado, filha."
Aquela voz irritante ecoa em sua mente enquanto voa em direção ao prédio. Os escorpiões a seguem pelo chão, mas antes da metade do caminho eles desistem e voltam para próximo daquelas árvores. Já o prédio está cada vez mais perto.
A entrada com certeza foi utilizada recentemente. Jasmim entra caminhando, já com a visão ativada, enxergando tudo em tons de azul.
Um jogo de escadas leva a um corredor um andar abaixo. Poeira e mais poeira e algumas salas no decorrer do caminho. Sob toda a poeira ainda há um brilho de raridade por aí afora. Sejam nos objetos, nos móveis rústicos. Como este templo permanece intacto ou quase isso sem ter sido saqueado? Jasmim pensa em duas possibilidades: está numa ilha abandonada ou o templo estava oculto no chão até que a magia voltasse à Terra.
Se ela estivesse aqui em função do dinheiro, passaria um bom templo nessas salas revirando tantos objetos valiosos. Mas não é seu objetivo, nem mesmo ela tem onde levar nada além do que já traz.
Então caminha pelo corredor até a sala do centro, onde há uma escada espiral para baixo. Tudo está escuro dentro deste templo, mas não aos olhos de Jasmim, que veem tudo em tons de azul.
Desde que chegou, algo lhe diz que nem tudo vai bem. Algo está errado. A imagem daquelas estátuas preenchendo a sala não a anima mais sobre esse pressentimento.
Luz. Como suspeitava, há mais alguém aqui. Uma fonte de luz mais à frente. Jasmim segura firme a morningstar enquanto seus pés deixam o chão. Segue voando lentamente, apenas para não fazer barulho, em direção a essa tal fonte de luz.
Estrondos repentinos por todo canto. Era o que Jasmim temia... Não com um temor covarde, mas pelo contratempo que isso poderia trazer. Olha ao redor e confirma que as estátuas estão se mexendo. A fonte de luz não está mais onde estava.
Rapidamente ela ataca a estátua mais próxima. Dois golpes certeiros que tiram uns pedaços de pedra e arremessam a criatura artificial de costas no chão. Olha o caminho até a saída e vê que não vai ter futuro enfrentar todos eles. Provavelmente já levaram as botas e se ela não sair rápido, vão conseguir fugir com elas.
Como um relâmpago, ela dispara em direção à saída, desviando de duas estátuas, mas esbarra na terceira. E lá está ela cercada.
Dois golpes certeiros e Jasmim derruba a estátua que está em seu caminho. As três outras a atacam. Apenas uma acerta e Jasmim cai.
Prontamente de pé, Jasmim dispara mais uma vez em direção à escada. Há duas estátuas nesta direção e ela vai em investida.
Apenas um golpe atinge a estátua, mas bastou. Ela está lado a lado com a última estátua e algo lhe chama a atenção. São estilhaços na pedra em formatos de corte. No pescoço e no braço da tal criatura.
Deve então se tratar de seu rival. E mais uma vez ele conseguiu o prêmio antes dela. Diferente das outras vezes, porém, ela nunca esteve tão próximo de alcançá-lo.
Atenta a cada movimento e ao mesmo tempo com um único objetivo em mente, Jasmim voa por dentro do templo até alcançar a saída.
Como um raio, deixa o templo em direção ao céu e para, esperando sua visão se acostumar à luminosidade.
Um barulho de motor e ela se lembra: este deserto não é de areias. A vista começa a se formar e ela vê alguém em uma moto, cheio de panos, se afastando do templo onde estava ainda há pouco.
Sem mais em que pensar, Jasmim voa em perseguição à moto. Suas mãos apertam a morningstar enquanto seu ombro esquerdo ainda reclama do golpe recebido da estátua.
Em sua mente, as lembranças de todas as mortes causadas pelo incendiário e a tentativa de destruir seu lar. De repente, a dúvida: será ele mesmo? Ela continua, pois sabe que no fundo não importa. Só importa que nos pés do motociclista estão as botas que ela veio buscar...
O Sol queima no deserto escaldante. Na paisagem em cores quentes, laranja quase vermelho, uma motocicleta segue em disparada, deixando um rastro de poeira. Este rastro não preocupa o motociclista, já que quem o segue é uma mulher armada, e que vem voando a menos de dez metros.
Uma voz grita qualquer coisa a plenos pulmões, mas Jasmim não entende, entende apenas que o motociclista é homem e russo, pelo sotaque do que ela não ouve bem.
Tenta se colocar lado a lado com ele, desviando sutilmente o trajeto. Sem sucesso. Não consegue voar mais rápido do que já está. E já está calor juntos.
Jasmim volta para perseguí-lo de cima. Só então vê para onde o motociclista está indo. Há um templo mais à frente. Ao perceber a proximidade com o templo escuro, o motoqueiro acelera, saindo definitivamente do alcance de Jasmim, ao menos por enquanto.
Do céu, ela vê a motocicleta parar e aquele vulto subir as duas centenas de degraus e saltar desesperado. Por vezes jurava que o veria cair, mas logo ele estava na plataforma intermediária do templo, onde há uma porta. Logo após uma última olhada para trás, ele entra.
O templo é estranho. De pedras escuras e opacas, algumas brilhantes. Seguem formando uma pirâmide, mas no meio há um chão e uma porta. Acima desta porta, o templo tenta ser pirâmide pelo que lhe falta. Resumindo, é como uma pirâmide de montar, com uma peça do meio faltando.
Num sobrevoo ao templo, Jasmim percebe que há também uma entrada do outro lado, que é construído com pedras mais brilhantes que o lado de cá. Decide-se então pelo novo caminho, mas antes...
Crackt!
Num voo rasante no lado fosco, acerta em cheio a motocicleta, voltando para o lado mais brilhante do templo.
Já na plataforma pode ver, acima da porta, inscrições rústicas.
- Klaitu maldito! - Exceto pelo "maldito", é exatamente o que parece estar escrito ali.
"Por que nunca me mostrou ou falou do objetivo final?! Sei que esta porta está intuitiva até demais, mas e daqui pra frente?"
Vendo tudo em tons de azul, Jasmim entra através da pequena porta, sendo recebida por uma escada espiral de curva muito longa. Provavelmente a outra entrada termina também numa escada em espiral, que se mescla com esta.
Enfim, termina a escada e começa o corredor, ela se senta e abre a mochila em busca de suprimentos. Tudo de maneira extremamente rápida. Enquanto se alimenta, ainda questiona: eu devia vir aqui logo ou impedir aquele ladrão?"
"Jasmim!"
- Klaitu, idiota!
"Só você me ouve. Você fez tudo certo. Foi bom ter parado pra comer pois seu anel da velocidade também acelera seu metabolismo como você já deve ter notado e... Bom, o outro foi libertar a criatura má e você precisa me libertar antes dele ou tudo estará perdido, entende?
- Acho que sim.
Não há tempo mais para discutir porquês ou pra qualquer coisa, Jasmim segue templo adentro, vendo tudo em tons de azul e ouvindo a voz de Klaitu na cabeça. Aquela voz irritante! Mas pelo menos agora falta pouco...
- Faltou te falar de tanta coisa, Jasmim. Pelo menos logo, logo tudo estará terminado e você poderá voltar à sua vida normal.
- Klaitu, cala a boca!
Jasmim flutua pelo corredor, enxergando tudo em tons de azul. E é desta forma que vê o requinte deste templo. Há várias pedras preciosas nas paredes, como parte do prédio.
O corredor faz uma curva, com várias portas dos dois lados, ornamentadas de joias Jasmim se aproxima de uma porta.
- Não abra! - É Klaitu. - São armadilhas. Não abra nenhuma porta, agora você tem que correr antes que o outro chegue senão vai estar tudo acabado.
- O que procuro exatamente.
- Tá vendo? A gente devia ter conversado mais sobre tudo isso! Você está procurando uma orbe, sabe? Um globo de pedra daqueles que são usados pra prever o futuro. Mas não agora. Agora você só tem que ir até o final. E não se incomode com portas, joias, objetos que parecem preciosos... Alguns deles até são preciosos mesmo, mas isso tudo é apenas distração. Não caia nesses truques, certo?
Jasmim continua sem tocar os pés no chão, seguindo a curva do corredor de tantas portas até que se depara com uma escada vertical. Simplesmente desce levitando por tal passagem, entrando numa sala de estantes com objetos antigos e livros. Uma sala enorme e que deveria estar bastante empoeirada, no entanto está limpa. E do outro lado da sala, outra escada desce.
- Jasmim? Não perca tempo! Está vendo aquela porta?
Jasmim olha para a porta de que Klaitu falava. E se volta novamente para a outra escada. Uma luz vem justamente das proximidades da outra escada.
- É você aí? Acho que... Jasmim! Isso! Jasmim Arsoyevna!
Ela se arma e se aproxima lentamente.
- Não, Jasmim! - É Klaitu. - Não se distraia!
- Jasmim... Bom, eu sou Ivan, um prazer! Depois a gente conversa mais. Tenho que cumprir uma missão e você também, né?
Um esqueleto aparece diante de Ivan e segue em direção a Jasmim, enquanto ele segue em direção à porta do outro lado da sala. É um gládio que ele segura que funciona como fonte de luz.
- Jasmim! Olha o tempo!
Ela libera a maça voadora e a deixa enfrentando o esqueleto, enquanto vai embora pela outra porta.
Uma sala enorme e vazia, com duas portas, uma à esquerda e outra à direita.
- Klaitu?
- Esquerda! Abra a porta da esquerda! A da direita é uma armadilha.
Mais uma sala enorme e vazia, mas com uma porta na parede da esquerda. Jasmim voa até ela: uma escada enorme de pedras.
- Jasmim! Já te livrei de muito perigo aqui, pode apostar. Se estivesse sozinha, tinha tido que enfrentar um monte de coisas. Mas no próximo piso não tem muito o que ser feito não. Você vai encontrar uns coisinhas chatas, mas hahaha! O que eles têm de vantagem sobre quem chega você já tem também! Que é poderem voar e a velocidade. Então é simples, mas esteja atenta porque eles são bem traiçoeiros. Eu disse só pra depois você...
- Tá, Klaitu, entendi! Agora cala a boca!
Jasmim segue voando rumo ao nível inferior deste templo. Em seus olhos azuis, a confiança e o desejo de que tudo termine logo.
Deslizando suavemente no ar, descendo aquela escadaria de pedras, Jasmim avista o que parecem ser duas miniaturas de gente voando. Um viking malfeito e um homem-lagarto ou algo do tipo, este bem esculpido. Sim, são estátuas, não lhe resta dúvida. Mas são estátuas que se movem.
"Então era disso que Klaitu estava falando?!"
Ela acelera em direção aos dois. Gira a morningstar tentando atingir ambos num só golpe.
"Como?"
Eles desviam do ataque e revidam. Um deles Jasmim consegue desviar, mas é atingida pelo réptil. A armadura a protege e então ela se lembra que pensou em abandoná-la em outro momento. "Uma armadura para levitar? Agora eu voo!"
Jasmim golpeia de baixo para cima visando o homem-lagarto, mas o alvo consegue desviar mais uma vez. Ela aproveita o impulso para girar o corpo, desviando dos golpes dos dois, e apoiar os pés no teto.
Tomando impulso, ela dispara contra o homem-lagarto, girando a morningstar de lado. Um estrondo. A morningstar acerta a parede, tirando-lhe algumas lascas.
- Miserável!
Jasmim desvia dos golpes dos dois e, já cansada do homem-lagarto, decide atacar o viking. A miniatura gira no ar após receber o golpe, batendo de costas na parede.
E lá vem de novo o homem-lagarto, que Jasmim desvia. Um som alto de algo cortando o ar. Foi o golpe de Jasmim, que por mais força que tenha empregado e por mais velocidade que tenha alcançado, mais uma vez não acertou o homem-lagarto.
Jasmim desvia o homem-lagarto e apara o machado da miniatura de viking com a morningstar. Tenta golpeá-lo, mas o viking gira por cima da trajetória da arma de Jasmim.
"Que tá havendo aqui, droga!? Será possível que eu, que enfrentei tanta coisa, não consigo dar conta de dois brinquedinhos?! A maça de guerra teria sido útil aqui..."
Jasmim desvia dos golpes dos dois girando o corpo para baixo. Continua o movimento num ataque com a morningstar vindo de cima e acertando em cheio o viking, que perde dois braços e é jogado contra o chão. Lá mesmo fica.
- Agora somos só nós dois. - Ela encara com olhar furioso a inexpressiva criatura reptiliana.
Com a língua bifurcada à mostra, ela usa uma espada árabe, uma cimitarra. Não tem pés, mas uma calda, como se fosse uma serpente. Seus braços têm um ar rústico mas, como o resto da estátua, são bem acabados. Em seus olhos, na espada e nos ombros aquele brilho provavelmente é de pedras preciosas. Tem provavelmente cerca de um metro se medir da cabeça até a ponta da calda.
Jasmim fica a pensar. Se ele ficasse totalmente imóvel, teria um bom valor no antiquário. Dá até pena ter que destruí-lo.
Ele vem tentando acertar Jasmim com a cimitarra, mas erra. Outro golpe e erra.
"Estou perdendo tempo demais com essa besteira."
Jasmim gira a morningstar com raiva. Diferente das outras vezes, desta acerta em cheio o homem-lagarto, que se parte ao meio. O pedaço de cima ainda acerta a parede com força, fazendo soltar um dos braços antes de finalmente ir ao chão.
Uma sutil expressão de satisfação se forma no rosto de Jasmim. Pensou que a luta fosse demorar ainda mais.
Levitando, ela vai ao final do corredor tão pequeno, que é a continuação da escada. Vira à esquerda, que é o único caminho possível aqui.
- Que merda!
Novas estátuas a esperam. E desta vez não duas, mas umas dez. E já dá pra ver que tem mais homens-lagartos...
A expressão de surpresa se desfaz rapidamente e Jasmim se prepara para enfrentar as miniaturas, que já notaram sua presença.
"Na verdade são oito. Mais um viking como o de antes, mais três homens-lagarto; dois samurais; um soldado grego e um gárgula. Todos distribuídos numa área de pelo menos sessenta metros quadrados. Golpeá-los ao léu não é uma boa. Vou focar primeiro os que são cópia única, a começar pelo viking."
Jasmim dispara rapidamente tendo como único alvo o viking. Dois homens-lagartos, que estão mais perto, a atacam. Um deles acerta sua armadura, o outro erra o golpe. O viking consegue desviar do golpe, mas o soldado grego e um dos samurais tentam em vão golpeá-la.
- Isso está ficando chato. - Ela faz a curva para a esquerda em direção ao viking.
Num giro da morningstar, Jasmim consegue o que queria. A miniatura gira até o chão, o corpo separado da cabeça. Prontamente, se desvia então dos três ataques que vinham: o soldado grego, um homem-lagarto e um samurai.
- Agora é o grego. Não...
Jasmim mergulha por baixo das estátuas. "Aqui eles me encurralaram..." Os dois homens-lagartos, porém, a acertam. Nada que machuque, mas por pouco Jasmim não perde o equilíbrio. "Ali está."
Com fúria, ela sobe e atinge com a morningstar o gárgula. Ele explode em pedaços de pedra e poeira.
Rapidamente percebe que quatro dos restantes estão vindo. Dois homens-lagartos no centro, um samurai pela direita e o soldado grego pela esquerda. Jasmim se desvia dos golpes dos três que não lhe interessam no momento e ataca o soldado, passando por cima dele. Ele desvia.
Agora é o outro homem-lagarto e o outro samurai que se aproximam. Sendo atingida pelo homem-lagarto e mais uma vez não sofrendo nada com o golpe, Jasmim ataca o samurai que vinha contra ela. Atingido, ele gira no ar e cai no chão. Um de seus braços de pedra ainda se mexe como um brinquedo a pilha. Estica e volta. Mas é o único sinal de movimento.
"Ótimo! Agora tenho dois únicos!"
Os mesmos quatro de antes vêm voando lado a lado e Jasmim tenta aplicar a mesma estratégia de antes. Desviar dos três que não importam no momento e acertar o soldado grego. Desta vez, consegue cumprir com seu objetivo com perfeição e o soldado grego se torna um a menos.
"Ótimo, agora só faltam quatro. Se eu soubesse que todos seriam derrotados com um só golpe não tinha me preocupado tanto em atacar só os únicos..."
Três homens-lagarto e um samurai a cercam e atacam. Dois homens-lagarto a acertam e ela sente o impacto do golpe do primeiro.
A bola de aço com pontas atinge a cabeça do samurai, enterrando-a dentro do próprio pescoço e arremessando-o no chão.
"Agora são só os homens-lagartos..." Era natural deixá-los para o fim. Não só pela impressão de serem mais perigosos como também por, mesmo com esses novos tipos que apareceram, esses homens-lagartos continuarem sendo as miniaturas mais trabalhadas por quem quer que os tenha feito. Mas ficarem por último não quer dizer que estejam "dispensados".
Jasmim os conduz numa espécie de dança em que os quatro vão percorrendo a sala, os quatro próximos um do outro e girando como uma ciranda. Trocando golpes.
Na segunda tentativa um deles acerta Jasmim. E é somente no quarto golpe de Jasmim que temos um homem-lagarto a menos. E logo em seguida, ela acerta o segundo. E então o último deles.
Para a surpresa de Jasmim, no instante em que destrói a última miniatura de homem-lagarto, a penúltima a acompanha e tenta acertá-la.
- Sabia que não iam me decepcionar. Se um de vocês tivesse que aguentar um golpe, tinha que ser um réptil.
Ela sorri e golpeia a miniatura de lado, destruindo-a de uma vez. E voa para a sala à esquerda, onde está a orbe.
Lá está a orbe, bem diante de Jasmim. Um globo com cerca de um metro de diâmetro. Entre o transparente e o branco, que forma algo parecido com nuvens.
A sala tem mais coisas: duas estantes fechadas e alguns móveis mais afastados da orbe.
Jasmim desliza seus dedos sobre a orbe para constatar que é mesmo como um globo maciço de alguma pedra semi-preciosa. Suspira e se volta para as estantes. Afinal, se esta orbe precisa de uma chave, provavelmente a chave está em algum lugar por aqui, numa dessas gavetas, numa dessas portas. Embora tenha o problema de saber exatamente que objeto seria a chave...
- Pare, Jasmim!
- Que é agora, Klaitu?
- Não mexa nesse monte de portas e gavetas. São armadilhas contra caçadores de tesouro.
Jasmim franze a testa. "O que tem de mais interessante e provavelmente mais valor por aqui é essa tal da orbe. Pra que armadilhas nos móveis e não na orbe?!"
- Eu não disse que não tinha armadilhas na orbe. Além do mais... É complicado...
- Tá, e como é que te liberto?
- Não precisa de "chave" para...
- Tá, e precisa de quê? Dá pra falar logo?
- Calma, Jasmim. Se acalme senão não vai conseguir, ora! Há uma chave, mas não é uma "coisa". A chave é um ritual que você vai ter que fazer.
- Um o quê?!
- Calma, Jasmim! Já disse! Tenha calma que eu instruo você, eu explico tudo e você vai conseguir.
Jasmim respira fundo e se aproxima mais uma vez da orbe.
- Sente-se e se acalme. Agora coloque a morningstar na sua frente. Isso. Abra os braços e feche os olhos. Curve o corpo até encostar a cabeça no chão.
Jasmim faz conforme Klaitu lhe pede. "Mas que droga! Por que não basta eu tacar a morningstar nessa pedra estúpida? Ter que fazer esse teatro todo..."
- Nem pense em fazer isso, Jasmim! Essa orbe tem magias poderosas protegendo e nem eu sei do que são capazes. Melhor fazer tudo direitinho para não correr risco, não é? Eu lembro de uma antiga história de um explorador que...
- Klaitu! Não temos tempo!
- Abaixa a cabeça! Isso! Não se mexa. É, temos não, vamos logo acabar o ritual, mas você quase estragou foi tudo. Por que você é tão esquentada, hein menina?
- E agora?
- Agora você diz "Phyug Wai Iugruph" e se levanta numa perna só.
- Phyug Wai Iugruph.
- Isso. Coloque a mão esquerda na cintura e a direita na testa, aberta para fora, e diga "Huoflipoz".
- Huoflipoz.
- Com a mão da testa faça o desenho de um triângulo na orbe, com os olhos fechados. Agora abra a mão e a coloque sobre o triângulo imaginário que você traçou com o dedo. E diga: "Wopi Klaitu Kriakem".
- Wopi Klaitu Kriakem.
Numa explosão Jasmim é arremessada para trás. A orbe se desmonta em fatias como as de uma abóbora, liberando uma forte luz branca. Jasmim ouve um estrondo e vê apenas uma calda enorme, como a de uma serpente, verde e lilás, subindo e atravessando o teto.
- Klaitu?
Segurando a morningstar com as duas mão, Jasmim vai pelo buraco no teto por onde acabou de passar aquela criatura estranha. Tão logo passe...
- Você!
Jasmim ao avistar Ivan voltando àquela sala pela outra escada.
- Jasmim? Como foi lá? Ei, calma aí...
Ele se joga para o lado, girando o corpo e caindo de pé, esquivando-se da investida de Jasmim.
- Calma, Jasmim! Desculpa pela sua casa, tá? Pra compensar, você pode ficar com uma parte maior do tesouro daqui!
Jasmim gira a morningstar atingindo em cheio o peito da armadura de anéis de Ivan. Ele é arremessado contra uma das estantes, derrubando prateleiras e livros.
Ivan se levanta com dificuldade. Sua armadura já traz os primeiros traços de vermelho de seu sangue. Empunha a espada e desaparece.
Aos olhos de Jasmim, o desaparecimento dura menos de um segundo. Quando Ivan dá dois passos largos para o lado, os olhos de Jasmim o acompanham.
- Como é isso? Está me vendo?! Eu estou invisível!
Jasmim dispara contra ele e o acerta de raspão. Ivan aproveita e, mesmo atingido, desfere com sua espada um golpe horizontal contra Jasmim. Um estrondo metálico denuncia o encontro do sabre de Ivan com a morningstar na vertical, defendendo Jasmim. Os dois se encaram.
- Legal a ideia das estátuas, não é? Não fazem nada demais, mas incomodam. Jasmim, isso tudo é nosso! Se quiser, pode ficar com as minhas estátuas também pro antiquário. Aliás, dá pra gente abrir até uma filial do antiquário, eu podia ser seu sócio na filial.
Jasmim, sem baixar a guarda, faz cara de interrogação.
- Não, não destruí as estátuas. Você destruiu as suas? Elas eram inofensivas! Só deu trabalho passar por elas... Então, pode ficar com as minhas!
Jasmim salta três metros para trás.
- É, estou vendo que...
Salta em novo ataque.
A morningstar erra, derrubando vários livros ao quebrar a estante próximo de Ivan. O sabre corta a prateleira e alguns livros de outra estante como se fosse manteiga ao tentar acertar Jasmim.
Ivan salta de lado quando a morningstar estilhaçou o chão onde ele estava. Seu sabre vem rápido, procura Jasmim e não encontra nada.
- Você luta bem, Jasmim. Muito bem.
A distração de Ivan lhe custa um outro golpe certeiro. Ele cai no chão, deslizando de costas, mas logo está de pé, como se as botas que eles disputavam há alguns minutos - ou horas - e que ele agora usa procurassem por ele a postura ideal.
Ele se abaixa, ferido.
- Jasmim... De que você é feita, afinal? Que ataca quem não quer lutar...
- Cale-se! Você já atrapalhou minha vida demais.
- Ha, ha, ha! É verdade... Mas já pedi desculpas, não pedi? Vou me redimir por isso, eu prometo! Não tem sentido essa briga nossa aqui, sabia?
Jasmim caminha devagar pela sala, encarando seu rival com curiosidade e hostilidade.
- Jasmim, pra que brigar? Já cumprimos nosso papel. Tudo acabou.
- O que quer dizer com "tudo acabou"?
- Ué, qual sua missão aqui?
- Libertar Klaitu.
- E pra quê?
- Não mude de assunto! O que quer dizer afinal?
- Não estou mudando.
- Estou aqui pra fazer o mundo voltar ao que era antes.
- Como assim?
- Sem esse caos que começou há uns meses.
- Sem magia? Hahahahahahaha! Ai... Sua arma machuca... Então ele te disse isso, foi? Que canalha! Pois Melthoz é esquentado, nervoso e precipitado, mas pelo menos foi honesto comigo.
- Quer dizer que Klaitu mentiu?
- Lógico! O mundo está assim e não tem como mudar. O lance é que Klaitu e Melthoz são inimigos de longa data e um quer acabar com o outro.
É evidente a surpresa de Jasmim.
- Cara, não acredito que ele te enrolou mesmo com esse papo furado!
- Se é como você diz, por que você libertou Melthoz?
- Porque ele falou que me mostraria objetos mágicos legais! E que havia muitos mais no templo e seria tudo meu: ele só queria a liberdade pra poder derrotar Klaitu.
- Será?
- Além do mais, se eu não venho ele não ia parar nunca de aparecer nos meus sonhos. E eu não ia ter mais sossego na vida.
- Parece uma versão interessante, mas se ele te dissesse que Klaitu quer fazer o mundo voltar ao que era antes e ele iria impedir, você iria?
- Lógico que sim! O mundo está bem mais interessante desse jeito! Principalmente eu estando entre os primeiros a entender e usar o que existe de novidade. Vai por mim, Klaitu mentiu pra você.
- Não brinca... Pois acho que toda essa conversa é só uma tentativa de evitar um confronto inevitável.
Jasmim salta cravando a morningstar na barriga de Ivan como se fosse uma lança. Ele tenta desviar e quase consegue, mas é atingido. Escapa para golpear Jasmim com seu sabre, abrindo um corte em sua armadura e barriga.
Mais uma vez, Jasmim salta três metros para trás. Leva a mão esquerda ao ferimento e volta com ela molhada de sangue.
- Miserável! você vai pagar por isso!
Jasmim voa contra Ivan, mas a morningstar é aparada pelo sabre.
- Nossa! Se esse sabre não fosse tão poderoso teria se quebrado facilmente.
Desta vez é a morningstar que apara um golpe do sabre.
- Jasmim, essa luta já foi longe demais! Não há porque lutar!
- Você tentou destruir minha vida.
- É, mas no amor e na guerra vale tudo! A guerra acabou. Nossa missão era libertar aquelas cobras lá. Pronto, libertamos os dois, agora eles que resolvam suas questões pra lá.
- Cobras? Então...
- Eu não acredito!! Você nunca nem viu o Klaitu?! Eu não acredito!
Jasmim se afasta novamente.
- Pois Melthoz me mostrou sua forma verdadeira desde muito tempo. Como você foi tão ingênua? Acreditar nessa história de o mundo voltar ao que era antes e...
- Cala a boca!
Jasmim salta, mas desta vez é Ivan que a atinge mais uma vez. Ela se abaixa. Gostas de sangue se agrupam sob ela pelo chão. Ivan empunha o sabre.
- Cansei de pegar leve.
A mão direita de Jasmim tira de uma estante um pequeno escudo metálico e o arremessa contra Ivan, que o apara fazendo com que seu sabre entre dez centímetros no escudo. Ivan se livra rapidamente daquele pedaço de metal, mas Jasmim já está no meio do salão, numa área com menos estantes.
Em seu rosto, a expressão de cansaço, bem como no rosto de Ivan. E como se não doesse seu corpo, como se os dois cortes que recebeu e ainda derramam sangue não fossem profundos a ponto de lhe render, no mínimo, duas cicatrizes enormes, como se isso não importasse, lá está Jasmim, segurando a morningstar pronta para o combate. E em seus olhos azuis, a determinação.
- Você é muito rápida. Por que não consigo te atacar duas vezes seguidas? Você usa uma arma pesada ainda por cima!
Jasmim permanece na mesma posição.
- Deve ser magia... Legal. Mas espere um pouco. Você está esperando que eu vá até aí? Eu não! Aí tem espaço demais e você voa. Você que venha pra cá!
Ivan também permanece onde está, com a lâmina de seu sabre para a frente. Uma lâmina que traz símbolos desenhados mais ou menos como a morningstar. Alguns dos símbolos, inclusive, são os mesmos, mas outros são totalmente diferentes.
As dores e o cansaço de Ivan também não são poucos.
- Não devia ter usado o esqueleto naquela hora, devia ter guardado para agora.
Palavras e assuntos terminam funcionando como uma forma de auto-hipnose para evitar que sinta as dores que maltratam seu corpo.
- Jasmim, no início...
- Você fala demais!
Jasmim voa contra Ivan, mas não acontece como ela esperava. Um corte em seu braço e um chute. Jasmim cai e desliza até bater em uma estante. A morningstar desliza para o lado oposto.
- Jasmim, eu disse que não ia mais pegar leve.
O chão cheio de livros e bugigangas a esta altura. Poucas estantes estão intactas.
- No início eu quis te matar. Só porque você estava no meu caminho. Afinal, se eu liberto Melthoz antes de Klaitu ser libertado, eu o ajudava, né?
Os olhos de Jasmim vasculham a sala. Pouco pode enxergar sem a ajuda da sua arma.
- Até que eu te vi. Jasmim, você é demais! Seu jeito sério, seu corpo... Cara, fiquei doido por você. Foi então que parei de tentar te matar e... Olha só pra nós dois! Eu acho que quebrei alguma coisa. Você também está péssima! O cabelo totalmente bagunçado e sujo... O rosto tem marcas de pancadas também. Imagino que eu não deva estar muito diferente.
Ele se senta entre Jasmim e a morningstar, ainda com o sabre na mão.
- Eu podia aproveitar esse momento para insistir em um acordo. Você ficar comigo, sei lá... Seria o momento ideal para você mentir que aceita e me apunhalar pelas costas. Mas você me parece muito "certinha" pra usar um truque sujo desses. Acho que se aceitasse um acordo, você cumpriria com ele mesmo que não gostasse. Sua cara diz isso.
Ivan se levanta e apanha a morningstar com a mão esquerda.
- Então esta é sua arma? Dá uma sensação muito boa de poder!
Jasmim olha com fúria.
- Sabe por que não proponho esse acordo que falei agora? Descobri que você nem era aquilo tudo que me pareceu. Você não vale a pena. - E se aproxima de Jasmim preparando o sabre para um golpe final.
Jasmim fecha os olhos.
"Anel do teleporte, anel da velocidade, corselete da levitação... Não, não adianta levitar se ele agora voa. Claro! Os brincos!"
A um comando mental, Jasmim ativa os brincos. Por um instante, mesmo de olhos fechados, ela pode ver vários objetos na sala. A maça de guerra voadora está perto da escada que Jasmim usara. E há mais poções e pequenos objetos espalhados, uma lança no topo de uma estante a uns dez metros de onde está... A dois metros, há um pequeno objeto de formato estranho, como uma ferradura com pé, formando um "Y". É o objeto mais perto dela, tirando os que ainda leva e os de Ivan.
Ivan... O brinco detecta objetos mágicos, como ela bem percebe. E agora Ivan está perfeitamente visível, mesmo Jasmim estando de olhos fechados. Ela vê uma armadura trazendo as duas armas e preparando o sabre para um golpe de misericórdia.
Por fora calma e conformada, por dentro Jasmim se concentra no golpe que virá.
- Foi bom conhecer você, de qualquer forma. Adeus.
A espada se aproxima rápido buscando o pescoço de Jasmim, mas ela se curva e rola para o lado. Ao fim do movimento, está a dois metros de onde estava. Ainda sentada, mas trazendo na mão direita o estranho objeto cujo uso ela já suspeita.
Sem esperar, bate contra o chão o lado que lembra uma ferradura.
Jasmim sente o objeto vibrar forte em sua mão e abre os olhos. Não ouve nada a não ser o grito de Ivan e o ruir da estrutura do prédio. Logo Ivan está caído e imóvel, com sangue escorrendo de seus ouvidos.
Blocos começam a cair. Jasmim toma as duas armas de Ivan. À simples ideia de sair dali, o sabre reage indicando um caminho. Rapidamente desviando de blocos que caem e passando por buracos nas paredes e tetos, logo está Jasmim fora do templo, voando acima daquela estranha pirâmide negra e antes que seus olhos se acostumem com o Sol, ela aciona a morningstar para enxergar tudo com clareza em tons de azul.
- Jasmim! Você está bem?!
Só agora pode ver. Duas serpentes gigantes estão ali, ao lado do templo. Sangrando e arfando, prontas para se atacarem mais uma vez. Jasmim identifica Klaitu pela voz e parte contra Melthoz.
São como dragões chineses sem patas, mas têm asas que lembram asas de ave. Certamente, sem penas. Klaitu se apresenta em cores vivas: verde, amarelo e laranja. Melthoz é escuro, misturando preto e vinho.
- Não interfira, idiota! Minha briga é com ele. - Melthoz fala, mas Jasmim continua vindo. - Que vergonha, Klaitu, ter que se esconder atrás de uma mulher. Esperava mais de você. Onde está Ivan?
Jasmim não responde.
- Vejo que está com a arma dele. Céus, perder para uma mulher! Estou mesmo cercado de idiotas. Mas nunca achei nem que ele conseguiria cumprir a missão. Ivan era preguiçoso demais.
- Fala assim da Jasmim não. Você sabe que... - É Klaitu, mas é interrompido.
- Cala a boca.
- Venha calar.
Melthoz mergulha abrindo as mandíbulas contra Jasmim, mas num giro rápido, logo um corte se abre pouco abaixo da boca da serpente. No que seria o pescoço. Não há tempo para Melthoz se recuperar da surpresa. Num giro, continuando o movimento, Jasmim crava a morningstar entre os olhos da criatura.
- Jasmim?! - Klaitu chama enquanto o corpo já sem vida daquela serpente preta e vermelha cai nas areias batidas do deserto. - Eu sabia como era especial! Desde o começo.
Jasmim vai em direção a Klaitu.
- É, você é demais! Sou seu fã, sabia? Eu... Ei, o que você está fazendo?
Na face fria de Jasmim, dois olhos azuis parecem faiscar enquanto ela se aproxima mais e mais.
Um barulho grave e a calda de Klaitu vem contra Jasmim pelo lado. Ela desvia o corpo, mas deixa de presente o sabre em seu caminho.
- Aaaahhh! Jasmim!? - Klaitu tenta se afastar um pouco. Machucado e agora ainda mais com o corte na calda, ele olha Jasmim com espanto, então joga a cabeça para a frente, para mordê-la.
O som seco da bola de aço da morningstar contra seu queixo. Jasmim a apoia debaixo do braço, usando o próprio ombro como alavanca.
Tudo fica escuro na visão de Klaitu que, tonto, movimenta o corpo em desespero. Quando a visão volta, preferia que não tivesse voltado. Jasmim vem de cima, prestes a cravar a espada na sua cabeça. Rápido e já muito perto. Rápido e inevitável.
As ruínas de um templo negro. Dois monstros mortos ali por perto. Do templo se vê ao longe uma mulher que se afasta voando. Não sente mais calor e fome, que não a haviam deixado em paz desde que veio. No meio da tarde, naquele deserto se vê a silhueta de uma mulher. Cada vez mais se afasta do templo voando, como um anjo da morte. Do templo só se vê a silhueta de Jasmim.
Jasmim é uma das novelas de Cárlisson Galdino. Visite http://bardo.ws/ e acompanhe as novidades do autor: poesia, contos, novelas, cordéis, games e Software Livre.
Visitem lá e comentem! Comentários sobre o livro no MarketPlace também serão muito bem-vindos!
Um grande abraço a todos!